Vidro Rasgado - Capítulo 15

Vidro Rasgado - Capítulo 15

Vidro Rasgado - Capítulo 15

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    Uma paisagem desértica vestida de branco cristalino da neve, cegava a visão do Quím que sentia-se perdido. Passeou de forma mecânica seus olhos pelo panorama procurando alguma referência que o pudesse situar do local onde estava, mas nada viu além do branco emanado pelo cenário. Ordenou os pés a caminharem e uma voz chamou sua atenção.

    - Para onde vais?

    Parou e olhou minuciosamente ao seu redor procurando o dono daquela voz.

    - Quem és tu? - Perguntou respirando o medo nos pulmões.

    - Para onde vais? - A voz repetiu a questão.

    - Procuro o caminho de casa.

    - Não há necessidade de procurar tal trilho... já chegaste a casa. - Afirmou a voz carregando a certeza no seu discurso.

    - Não. - Quím retorquiu. - Não vejo minha residência.

    - Será que não vês? Ou não queres ver?

   
Quím fechou os olhos entrando num processo introspectivo e mergulhou até os confins da sua consciência.

    - Será que isso é real ou é produto da minha imaginação? - Pensou.

    Abriu os olhos e viu sua residência a uma distância de 3 metros e Melm

an pendurado no braço frontal da varanda.
    - Não é possível! - Exclamou boquiaberto.

    - É sim, como havia lhe dito estás em casa.

    - Não, como é...

    Pausou o discurso, levou as mãos ao peito como se quisesse amenizar alguma dor que sentia. Dores de cabeça lhe invadiram castigando-o dolorosamente, e a sua residência começou a desvanecer do seu horizonte. Quím acabou caindo nos braços da paisagem branca, fechando os olhos paulatinamente e viu o espectro de um velho barbudo e de vestes brancas.

    Passado muitos segundos, uma luz branca rutilou nos olhos do Quím, inconsciente ouviu uma voz gritando e aplausos ganhando vida nos seus órgãos auditivos.

    - A operação foi um sucesso, mais uma vida resgatada.

    A alegria instalou-se no semblante da equipa médica, suspiravam de alívio pois era um fardo a menos nas suas costas terem salvado o enfermo.
    Quím conduziu seus olhos para o lado direito e viu o vazio acomodado na maca que era ocupado por Zé. Seu rosto vestiu a preocupação e curiosidade. Tentou falar, mas as palavras recusavam sair de sua boca. Olhou fixamente para maca que fora do Zé e um enfermeiro entendeu a preocupação do polícia.

    - Procuras pelo teu companheiro?

    Quím afirmou positivamente com a cabeça.

    - Está na sala de recuperação.

    A brisa da tranquilidade invadiu-lhe o âmago, sua vontade era levantar da maca e ao encontro do parceiro ir para lhe agradecer, mas as forças ainda não tinham se restabelecido no seu corpo.
    Passeou seus olhos nos contornos da Sala de Operações e viu um quadro que continha a imagem dum ente que o nominalizaram Salvador do mundo, e uma pequena chama de esperança reluziu no íntimo do Quím.

    - Louvado sejas. - Monologou mentalmente.

    Mas o odor dos fármacos resgataram-no para realidade e as náuseas lhe invadiram o organismo o que fez com que os médicos o transferissem urgentemente para Sala de Recuperação.
    Na Sala de Recuperação, Zé contemplava o tecto naufragando no mar dos seus pensares e preocupado com o estado clínico do parceiro. E não tardou para sua preocupação desvanecer, Quím entrava na Sala de Recuperação transportado na maca. Os olhos do parceiro brilharam como se tivesse sido acertado pela flecha do cupido.

    - Não morres tão cedo. - Zé afirmou sorrindo de forma benévola para o amigo.

    Quím limitou-se a retribuir o carinho do amigo com um sorriso tímido, pois estava incapacitado de articular os vocábulos. Os enfermeiros instalaram a maca do Quím ao lado do Zé e advertiram:

    - Não o force a falar, ainda está em recuperação senão os pontos vão se abrir.

    Zé abanou a cabeça aceitando afirmativamente a recomendação escusando-se a tecer algum comentário, pois sabia que tal petição seria impossível de cumprir. E olhou para o companheiro e viu um sorriso de negação esboçado no seu rosto.

    - Digam isso a ele. - Libertou as palavras e apontando para Quím.

    - Isso é extensivo a ti, não force a fala.

    Quím mostrou o polegar em forma de afirmação. O enfermeiro abandonou o quarto deixando a dupla na companhia de outros enfermos.

    - O inferno é bonito? - Zé perguntou num tom de voz sarcástico.

    - Acho que conheci Deus! - Sussurrou com dificuldades fonéticas.

    - Como Ele é? - A curiosidade lampejou nos olhos do Zé.

    - É um velho barbudo, de pele transparente e acho que o tipo tem poderes de materializar as coisas...
   
Interrompeu o discurso para reabastecer os pulmões que já esgotavam o reservatório do oxigénio no corpo. Quis continuar a relatar a sua precoce estadia no além-mundo, mas os vocábulos recusavam de libertar-se no seu discurso. Vendo aflição do parceiro, Zé limitou-se a lançar um olhar de conforto para o Quím.

    - Obrigado pelo apoio. - Afirmou Quím no silêncio das palavras.

••••
    O sol despia-se dos olhos pervertidos dos homens, a sua nudez convidava o encanto noctívago a seduzir as lentes humanas que se perdiam nos prazeres infindáveis emanados pela cortina nocturna. Algures, no mundo, Jorpa estava trancado num quarto qualquer na companhia do sozinho desmanchando o embrulho que encontrou no automóvel do Zé. Desplastificou o preto do plástico que ocultava uma caixa cor-de-rosa, que continha uma boneca que enlouquece o mundo das crianças femininas. O semblante do Jorpa sorriu ligeiramente e um pensamento lhe invadiu a consciência.

    - Este Zé é um pensador do caraças e um bom estratega!

    Continuou o processo de desnudar o pacote até encontrar um envelope amarelo que estava no fundo falso da caixa da boneca. Tirou o envelope cuidadosamente como se estivesse a carregar um bebé recém-nascido, violou o envelope com calma e paciência e tirou do interior do mesmo um calhamaço de papéis, um gravador e um pente gravurado com as iniciais “ND”. Apertou no play, enquanto isso passeava seus olhos nos papéis. Ouviu uma voz familiar no gravador, deixou os papéis na mesa e direccionou sua atenção à máquina que tem poder de registar as vozes.

    Três minutos se passaram depois que convidara a senhora contracção para lhe fazer companhia na escuta das revelações que o gravador ia vomitando.

    - Uh!!! Esse buraco é mais fundo do que eu pensava! Se tivesse cursado Jornalismo, com certeza o conteúdo carregado por este gravador ia impulsionar a minha carreira.

    Afirmou com olhos brilhando de felicidade como se tivesse achado uma mina de ouro. E começou a navegar nas suas alucinações mentais.

    - “Política, lei e os bastidores do poder”, “Dois P’s e seus impactos sociais” ou “O lado escuro até então escamoteado”, o jornal ia vender muitos papéis e eu ia facturar muito! - Exclamou meio despido da sua consciência.

    Desvencilhou-se do mundo nefelibático e voltou a mergulhar nos dizeres que cuspidos pelo gravador, voltou a direccionar atenção dos órgãos auditivos e ouviu a voz do Zé:

    “Últimos cartuchos da investigação: Se estás a ouvir essa gravação com certeza já não faço parte dos vivos ou fui afastado da corporação. Se estás a me ouvir creio que ouviste as revelações que antecedem a minha voz. Pois bem, sem alongar o meu palavreado (risos), me lembrei do Nevinga (risos), e acho que a convivência com ele está afectar meus neurónios...
  Há três meses atrás fui chamado pela PGR sem saber previamente os motivos pelos quais fui chamado, chegado lá encontrei o Nevinga que acabou clarificando o porquê da intimação... Nos levaram a sala de conferências e explicaram que estavam a investigar alguma ligação da polícia com os partidos políticos e a investigação estava baptizada “Operação P”. Ouvimos as recomendações dadas pela PGR e começamos a trabalhar, mas a uma dada altura me pareceu que alguém estava sabotar meu trabalho.
    Ignorei tal facto e continuei a trabalhar que acabei descobrindo que era o Nevinga que sabotava meu trabalho, tudo ficou claro que foi visitar Gastón... E descobri que muitos dirigentes que ocupam cargos importantíssimos no aparelho do Estado estão envolvidos nos esquemas obscuros que retardam o desenvolvimento do país, a função pública está cheia de ratos que roem o bem-estar público.
  Essa gravação é uma das peças do puzzle, a próxima pista para a derradeira conclusão são as iniciais que estão no pente. Tenha cuidado Quím, este mundo está cheio de abutres impiedosos. "
    O silêncio amordaçou o gravador e a voz do Zé desvaneceu dos órgãos auditivos do Jorpa que estava atónito digerindo as informações que bloqueavam o seu sistema neurológico. Pegou no pente cor-de-laranja que estava na caixa da boneca e analisou minuciosamente as iniciais. Mergulhando seus olhos no alaranjado objecto, subitamente levantou da cadeira como se tivesse recebido uma injecção titânica.

    - Eureka!

    Vestiu um sobretudo preto que estava pendurado na porta, saiu do compartimento, trancou a porta e caminhou para o exterior da residência perdendo-se na bruma nocturna que camuflou seu destino.

••••
    As lâmpadas do corredor lampejavam pressageando actos malévolos, na brisa nocturna sopravam os contornos de múltiplas incertezas que privavam Zé de cair nos braços repousantes do senhor sono. Os seus olhos contemplavam o escuro que era respirado pelo quarto, olhou para porta e viu sombras debaixo do vão inferior da porta. Pegou na cintura de suas calças e sentiu ausência do Smith&Wesson44.

    - Merda! - Sussurrou indignado.

    Levantou da maca, calçou o branco dos chinelos medicinais nos pés e caminhou até ao Quím que estava embalado pelo sono dos justos.

    - Quím? - Sussurrou sacudindo-o para despertar. - Temos que sair daqui. - Acrescentou.

    - Uh..hhh, ainda é cedo para ir ao trabalho.

    - “Os anjos da morte vêm nos buscar”. - Afirmou Zé.

    Quím acordou alarmado sentando no dorso da maca, esfregou os olhos com as mãos chamando a lucidez da sua visão e mecanicamente olhou para parte inferior da porta e viu duas sombras humanas na companhia das armas se aproximando da porta lentamente. Levantou da maca com ajuda do parceiro e apoiando-se ao Zé caminharam até a porta e esconderam-se por detrás da mesma.
    - Quarto três, é este. - Afirmou um dos homens abrindo a porta e convidou o cano da sua arma a espreitar o interior do compartimento.

    - Makarov silenciada.

    Sem emitir som, Quím disse olhando para o parceiro que se preparava para golpear o indivíduo. O homem deu três passos para dentro e foi sugado pelo escuro do quarto. OBhomem que estava do lado de fora entrou no quarto para ajudar o seu parceiro e também foi sugado pelo escuro do quarto.
    Cinco minutos passam no relógio analógico que estava pendurado na parede quinze centímetros acima do quadro do Salvador. Os homens saem do quarto aliviados sentindo a liberdade lhes invadir a alma, porém um dos homens estava a coxear sentido o cansaço da batalha no corpo.
    Já na saída do hospital contemplando o céu que emanava o azul nocturno, um dos homens olhou ao parceiro e suspirou:

    - Bem jogado Zé, és meu anjo da guarda e...

    Zé deu dois passos para frente servindo de escudo para o companheiro quando se apercebeu que um automóvel se aproximava e uma mão hasteada na janela do automóvel empunhava uma Kalashinikov que libertou três balas, que foram directamente ao encontro do corpo do Zé.
    O céu do rosto do Quím mudou bruscamente anunciando o mau tempo, seus joelhos beijaram o asfalto e suas mãos foram ao encontro do corpo do Zé que estava no asfalto formando uma cascata do líquido vermelho viscoso que desaguava nas entranhas do dorso do passeio. Quím aconchegou o parceiro no seu colo.

    - Não me deixes Zé... - Sua voz voltou ao normal e o líquido salgado beijava o solo da sua face. - A guerra ainda não acabou.

    - Meu pai sempre disse que “um bom soldado morre na guerra”... E sempre disse que o meu instrumento de trabalho ia ceifar minha vida, mas nunca dei ouvidos a tais sermões... Agora fazem sentido. Deixa de choramingas até pareces uma criança desprotegida...

    - E sou...

    - Nós dois sabíamos que tarde ou cedo isso ia acontecer...

    Pausou o discurso e tossiu gravemente, o desespero apoderou-se da consciência do Quim que gritava pedindo por ajuda.

    - Não é necessário... - Reactivou o discurso. - Sinto a presença dos anjos da morte... sentes esta brisa?

    Quím nada respondeu, apenas se limitou em emprestar a atenção dos seus ouvidos ao parceiro que desvencilhava paulatinamente do mundo dos vivos.

    - Minha mãe sempre disse: “o mundo acaba quando nos morremos”... Meu anseio neste exacto momento era morrer nos braços duma mulher de cabelos pretos e longos, de corpo esbelto e com peitos durinhos como pêssegos, uma mulher que seu perfume cheira à jasmins...

    As alucinações do Zé, lhe puxavam a anatomia da mulher que o resgatou do mundo paralelo no capítulo 2.

    - Infelizmente morrerei sem conhecer a geografia dos teus lábios e muito menos o teu substantivo... Ah vida injusta!

    Um sorriso cândido estampou-se no rosto do Zé e seus olhos contemplaram a nevada das suas doces memórias em vida. Deu uma profunda inspiração como se o ar lhe faltasse nos pulmões e não tardou para Quím sentir o gélido corpo do parceiro nas suas mãos.

    Quím levantou com o semblante encharcado pelo líquido salgado que nasce dos olhos, pegou nos kalashis que estavam no chão disparou dois tiros ao ar e começou a caminhar sem olhar para trás deixando o corpo do parceiro aconchegado no calor dos braços do asfalto do hospital, e desapareceu do panorama engolido pelo escuro da noite.


ARNALDO TEMBE
Fernando Absalão Chaúque

Professor, escritor, poeta e blogueiro. Licenciado em Ensino da Lingua Inglesa. Autor de ''Âncora no ventre do tempo'' (2019) e co-autor de ''Barca Oblonga'' (2022).

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