Vidro Rasgado - Capítulo 14


Vidro Rasgado - Capítulo 14
Vidro Rasgado - Capítulo 14
Vidro Rasgado - Capítulo 14


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Os espectros solares incidiam nas vísceras do mundo, iluminando vidas que conheciam o seu valor. O escuro da madrugada tinha se apartado por completo deixando o azul celeste dominar o encanto matutino. O suave vento matinal carregava nas suas costas múltiplos sentires e odores, desde a buzina afinadíssima da bicicleta até o fresco do pão acabado de sair do forno da lenha. As pessoas, os automóveis, os diálogos, agitações, etc certificavam que o mundo tinha despertado da letargia nocturna.

Angelina conduzia seu automóvel ao som intitulado "be careful of my heart" da Tracy Chapman, misturado com a melodia suave do vento que espreitava o interior da viatura através dos vidros entreabertos das janelas. Enquanto a música lhe embalava, memórias dos últimos acontecimentos invadiam sua mente, o espectro do Quím espiou a consciência dela, o que lhe fez despertar dos seus devaneios.

- Por onde tu andas?! - Exclamou inquirindo ao vento.

- Não me vês? - Indagou a voz que parecia ter perdido o fôlego.

- Não.

- Talvez não queres me ver! - A voz desanimou-se.

- Ah saudades, é um...

Foi interrompida de prosseguir com o discurso por uma rajada de tiros descarregada contra sua viatura. Tracy foi silenciada por um tiro certeiro no emissor das frequências MHz, Angelina tirou uma pistola que estava escondida debaixo do assento do motorista e disparou desconcentrada sem destino definido.

- Quem sois vós? O que vos fiz de mal? - Perguntou furiosa e desesperada. Porém, o grito das armas soou nos ouvidos dela ignorando a pergunta. A chuva de balas se intensificou cada vez mais, os tiros e a voz da Angelina desvaneceram. Desceu do automóvel que descarregava tiros contra Angelina uma pessoa que caminhou até o Corolla XE Sallon, espreitou para o interior e viu Angelina estatelada e imóvel. Tirou um celular do bolso da sua jaqueta cor da noite, discou alguns dígitos e direccionou o dispositivo à orelha que carregava um brinco vistoso e inconfundível, era um brinco de ouro banhado por um cristal luminoso.

- Missão cumprida. - Informou e em seguida desligou a chamada sem esperar a voz do receptor.
Os olhos da Angelina foram seduzidos por um sono repentino, o cansaço dos olhos viam uma imagem embaçada de pessoa que se aproximara da viatura e sua consciência revelou a voz da pessoa misteriosa que acabara de telefonar.

- Susu... Suzana tutu...tu...

A voz encravada da Angelina desapareceu da sua boca, os ventos do além sopravam a volta do XE Sallon. O entendimento se desligou da consciência da Angelina.
A mulher voltou para o automóvel, um Dodge 1979 de cor preta, e desapareceu dali como se tivesse aplicado um truque mágico. E minutos depois o local do tiroteio foi infestado por uma multidão.

- Isso só pode ser um ajuste de contas. - Afirmou um homem barrigudo embalado num fato que parcialmente denunciava sua identidade.

- Não, acho que foi uma tentativa de sequestro fracassado. - Refutou a ideia do homem, um jovem de óculos de vista que aparentava ser um estudante universitário.

Passados alguns minutos, uma ambulância se fez ao local e transportou Angelina para o hospital.

••••
Suzana era uma jovem mulher de beleza notável, respirando o vermelho apaixonado nos olhos que se confundia com fúria da combustão da fogueira. O encanto nocturno era a essência do seu cabelo. Jovem meiga, simpática e amável, porém tinha um temperamento do mar, calmo quando é preciso e perigoso quando necessário. Era legista na esquadra e Angelina tinha-a como sua melhor amiga e colega do trabalho. Porém Suzana traiu o afecto da Angelina e não hesitou em eliminar aquela que a tinha como parceira das jornadas laborais e não só, uma companheira da vida.

••••

-  PCLEB, o que será? - Perguntou-se delegado Nevinga e rematou: - Maldito Zé, sempre enigmático!
A porta do seu gabinete recebia algumas agressões quando tentava alargar seu pensamento.

- Quem é o indivíduo que interrompe a minha introspecção? - Inquiriu.

- Jorpa, senhor!

- Tenha bondade... não fique aí plantado, homem. - Disse tais palavras com um sorriso largo que se estendia da ponta da orelha para a outra. - Ainda bem que apareceste, preciso da sua ajuda.

- Sempre às ordens. - Afirmou Jorpa.

- Preciso que me ajude a decifrar esses grafemas. - Apontou para o branco do papel que continha as letras PCLEB.

Jorpa inspeccionou atento e milimetricamente aquele papel, levantou-o contra luz da lâmpada do gabinete do delegado. Ficou longos segundos analisando as letras em todos ângulos, fitou os olhos do delegado e rematou:

- Fazem parte de alguma investigação?

Nevinga enfrentou o polícia com olhos de ameaça carregando uns vocábulos: "sigilo absoluto", como se Jorpa tivesse decifrado o silêncio das palavras do delegado afirmou:

- Não vai ser fácil ajudá-lo neste silêncio reinante.

- Deixa estar... Não é algo relevante... São assuntos banais. - Desconversou. - O que te trás aqui? - Perguntou com olhos lampejando a curiosidade.

- Trago uma notícia desagradável. - Seu tom de voz mudou.

Delegado já sabia do que se tratava, preparou seu espírito para criar uma acção de espanto, chamou a tristeza para se acomodar na sua face.

- Que notícia é essa? - Inquiriu com voz de preocupação.

- Angelina foi crivada de bala.

O semblante do delegado vestiu-se de espanto para fazer companhia à tristeza que se sentia solitária.

- "Crivada" não no sentido literal da palavra.

Afirmou Jorpa desassociando-se do aconchego da cadeira caminhando em direcção a porta e lembrou-se de algo que o fez regressar ao conforto da cadeira metálica enfofisada pelo pedaço de nuvem fabricada.

- Estranho delegado...

- O quê? - Indagou ainda na pele do actor entusiasta.

- Quím não ter aparecido até agora, ele ia o ajudar a decifrar as letras.

- Talvez foi seduzido pela cama... não se preocupe quando chegar pedirei ajuda, fique descansado quanto a isso.

Jorpa levantou-se pela segunda vez caminhou em direcção à saída do gabinete e desapareceu das vistas do delegado.

- Essa bola de neve está a se tornar numa avalanche. - Dialogou delegado com os seus botões.
Desprendeu-se do seu conforto, passeou pelo gabinete como se fosse a primeira vez a estar no mesmo, caminhou até um espelho que estava pendurado na parede e contemplou seu rosto que começava a despontar alguns sinais de velhice.

- Estás a retornar a inocência, porém com alguns fragmentos do tempo. - Confessou-lhe a sua consciência.

Nevinga apartou-se do seu reflexo caminhou até a janela que tinha vista para o parque dos automóveis da esquadra, e viu o Peugeot do Zé enrolado numa lona triste e solitária.

- Será que os documentos estão naquela sucata?! - Pensou alto. - Mas não... Zé é estratega sapiente, seria uma ingenuidade esconder algo tão relevante e comprometedor naquela sucata. - Afirmou avaliando a estrutura envelhecida do Peugeot.

Voltou ao aconchego da sua cadeira giratória, pegou um maço de cigarros que estava escamoteado na primeira gaveta da secretaria contando de cima para baixo. Tirou um cigarro e acendeu-o, deixando-o suspenso no canto direito da boca e voltou a mergulhar no ermo dos seus pensares.

Já no seu gabinete Jorpa teria se atribuído voluntariamente uma nova tarefa, descobrir o significado dos grafemas que vira no gabinete do delegado Nevinga e lembrou que teria visto os mesmos algures no gabinete de Zé e Quím.

- Uh! Algo nessa equação não está correcta, as incógnitas foram escamoteadas. Que resultados escondem aquelas letras?

Pensou profundamente que até as veias começavam a se grafitar na sua testa. Escreveu as letras na forma vertical numa folha branca que poluía a sua secretaria.  Olhou-as atenciosamente sem pestanejar.

- "P" de pistola, polícia, pensão... Zé às vezes vive numa pensão, mas não... - Descartou as hipóteses, fez um esforço mental e gritou: - Eureka! O Peugeot... - E abaixou a voz: - Aquela lata velha pode estar a esconder algo precioso por baixo daquela velhíssima indumentária.

Saiu do seu gabinete na companhia da senhorita pressa, e foi desaguar numa janela no fundo do corredor da esquadra, ficou uns cinco minutos contemplando o automóvel do Zé.

- É provável que esteja! - Suspirou silenciosamente e regressou ao seu aconchego.

Voltou a enfrentar o papel e inspeccionou minuciosamente a letra "C". Múltiplos pensares invadiram-lhe a cabeça, porém seleccionou nenhuma. O "P" do Peugeot não lhe saía da mente. Decidiu ir ao encontro da lata velha. Chegado no estacionamento, descortinou o automóvel e deu duas voltas á sua volta contemplando o azul-escuro do Peugeot que ia se clareando com o passar dos anos.

- Vejamos o que escondes debaixo dessa aparência! - Sussurrou.

E aproximando-se da porta do motorista arrombou-a num golpe de mestre como se abrir portas trancadas e sem chaves fosse nada. Acomodou-se no assento do motorista e pôs-se a vasculhar o interior do automóvel com os olhos, enquanto ia usando umas límpidas luvas e em seguida começou a palpar os contornos do veículo na esperança de encontrar uma pista valiosa.

Após sete minutos da sua busca, nada encontrou e a frustração começou a se apoderar da sua concentração. Voltou a contemplar o interior da viatura e afirmou:

- Para uma lata velha, estás bem conservado.

Olhou para o espelho retrovisor e viu seus olhos reflectidos na poeira que consumia o espelho. Limpou-o atenciosamente e viu reflectido um "C" invertido para esquerda que estava na ponta superior do assento do acompanhante do motorista.

- Será a pista que estou a procura? - perguntouse mentalmente.

Sem mais delongas, aproximou-se do assento que continha a letra "C" apalpou-o e acabou descobrindo um fundo falso nas costas do mesmo.

- Esse gajo não facilita! - Exclamou sentindo a brisa da paz lhe refrescar o âmago.
Meteu a mão esquerda no escuro das costas do assento e pegou algo que parecia pesado. Foi tirando a mão das costas do assento e a claridade diurna revelou um embrulho indumentado num plástico preto.

Antes que alguém o visse ali, trancou a porta e voltou a cortinar a viatura e desapareceu do local com o embrulho como se dum fantasma se tratasse.

•••

Batidas na porta resgataram um ente que naufragava algures no mar dos seus pensares, embalado por um sono que cortinava suas lentes naturais interludicamente.

- Quem é? - Perguntou uma voz rouca meio sonolenta.

- Inês, senhor. - Respondeu uma voz meiga e doce espreitando para o interior do compartimento.

- Eu disse que não queria ser incomodado. - Afirmou a voz exaltando a sua rouquidão.

- Desculpa senhor, mas há um homem que deseja vê-lo, diz que é ur...
O discurso da Inês foi interrompido por aquele que parecia ser seu chefe.

- As urgências são óptimas estratégias para conseguir algo rapidamente, são infalíveis. - Afirmou muito aborrecido. - O tipo se apresentou? - Indagou olhando para o decote provocante da blusa da Inês que lhe despertou muitas sensações na mente.

- Diz ser delegado Nevinga...

- Mande-o entrar.

Ordenou levantando seu corpúsculo que repousava no castanho do sofá instalado no canto direito do escritório de cinco metros de comprimento e quatro de largura. Dirigiu-se para a cadeira giratória da sua secretária esculpida em madeira e envernizada para dar brilho a mobília. Pegou em alguns calhamaços de papéis, usou seus óculos de leitura e começou a vasculha-los fingindo estar concentrado.

Novamente a porta foi agredida, Inês introduziu sua cabeça e informou a presença do delegado.
- Já cá está? - Perguntou com um tom de voz de espanto. - Mande-o entrar, não o deixa pendurado. - Exaltou a voz encenando um personagem muito chata. Nevinga entrou e começou a palavrear.

- Não há necessidade de agredir verbalmente a doce rapariga. - Afirmou olhando para Inês com um ar de encantado exposto no seu rosto.

- Os tubarões nunca perdem a sua natureza, mesmo fora do seu habitat continuam tubarões. - Disse o boss da Inês embalado num sorriso sarcástico. - O que lhe traz aqui? - Indagou enfrentando os olhos do delegado Nevinga.

O encanto começou a murchar paulatinamente no semblante do Nevinga, a seriedade seduziu suas feições faciais. Nevinga caminhou ao encontro do Gastón e acomodou-se numa das duas cadeiras que estavam em frente da secretária do anfitrião.

- Bem... - Começou a desmanchar o discurso. - As coisas estão fora do controlo.

- Fora do controlo? Em que sentido?

- No geral...

Gastón afastou-se da inércia levantando da cadeira, caminhou até a janela que tinha vista panorâmica para uma movimentada avenida. Permaneceu longos segundos contemplando o horizonte como se estivesse num processo meditativo. Subitamente virou enfrentando visualmente o seu visitante.

- Sabes o que estava a pensar? - Perguntou seriamente.

- Não... - Respondeu delegado. - Mas não faço questão em querer saber. - Concluiu o discurso.

- Infelizmente não tens opções, vais ter que me ouvir. - Disse com mão esquerda fungando algo no bolso do seu casaco. - Sabes...

Pausou o discurso tirando do bolso do casaco um isqueiro revestido de ouro e acendeu um charuto que já estava suspenso na sua boca.

- Sabes Nevinga, acho que vais pagar os erros dos teus pupilos.

Chupou com força o charuto puxando o fumo para o seu íntimo e exclamou: 
- Malditos cubanos, os gajos sabem fazer charutos que avivam a alma!

Nevinga confirmou a exclamação do Gastón abanando a cabeça afirmativamente, atirou um envelope na mesa do anfitrião, este olhou-o e perguntou o que era aquilo espumando curiosidade nos olhos.

- Um envelope amarelo que contém as pistas dos teus actos obscuros. - Nevinga afirmou sarcasticamente.

- "Pistas"? - Gastón perguntou enfatizando o adjectivo. - Não tens vergonha sair da tua esquadra, incomodar-me no meu trabalho para me apresentar "pistas"? Vês aquilo? - Perguntou apontando para o calhamaço de papéis sobrepostos na sua mesa. - São relatórios que precisam da minha atenção. Se não tens nada importante a me dizer, por favor deixe-me voltar ao trabalho. - Rematou voltando para o conforto da sua cadeira giratória.

Nevinga encarou Gastón com olhos de um predador prestes a agarrar a sua presa, levantou-se da cadeira e deu sete passos até a porta transparente do escritório, que estava identificado no seu pescoço por um atributo, substantivo comum e em baixo do atributo alguns escritos: "Dr Gastón, Departamento de RH". Olhou para o Gastón e fechou a porta rumando para o seu destino desconhecido.

Gastón chamou a secretária pelo telefone e ela não tardou a comparecer ao chamamento do boss, trazia consigo uma bandeja com uma chávena no centro.

- Agradecido senhorita Inês, sem ti o meu dia aqui neste lugar seria aborrecedor.

Inês agradeceu o afago e voltou aos seus afazeres deixando o boss na companhia do sozinho naufragando no mar dos seus pensamentos. Gastón abriu o envelope e começou a passear seus olhos nos documentos que eram contidos pelo amarelo do envelope e soltou a fala:

- Esse Nevinga só me traz problemas, deve inexistir já viveu demais para atrapalhar meus planos.

Pegou na chávena trazida pela secretaria e deu um one time no líquido acastanhado e amargo que estava no recipiente de porcelana branca


Autor: Arnaldo Tembe
Fernando Absalão Chaúque

Professor, escritor, poeta e blogueiro. Licenciado em Ensino da Lingua Inglesa. Autor de ''Âncora no ventre do tempo'' (2019) e co-autor de ''Barca Oblonga'' (2022).

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