Crítica Linguística 02: ‘‘Rabhia’’ de Lucílio Manjate

 

Por Gerson A. S. Pagarache

gersonantonio.p@yahoo.com

 

O pequeno trama de Lucílio Manjate disfarça-se em narrativa policial para denunciar, não a vida vil da prostituição, ou a ineficácia dos serviços de investigação policial, sequer a violência sexual; mas a inércia e letargia de uma sociedade que, para funcionar, para continuar ‘‘maningue feliz’’, como se refere na obra, ela inventa um desequilíbrio, cria uma perturbação, orquestra uma morte. Só assim a sociedade continua a funcionar, num ciclo vicioso, à procura do equilíbrio: a resolução da morte arquitectada. A investigação policial é só um disfarce para o ‘‘inglês ver’’. Assim é a nossa trágica vida. Essa revelação é feita pela prostituta Margarida, quando se dirige ao polícia estagiário Bernardo: ‘‘Não somos assassinos, mantemos a ordem. Rabhia morreu para tu renasceres, pensa nisso’’.

Tal como o mundo inteiro, Moçambique é um território multilíngue, onde não só coabitam línguas de origem bantu, como também as de origem asiática, latina, germânica, entre outras. Assim, é uma variável constante na literatura moçambicana, o diálogo entre a língua portuguesa e as demais línguas. Nesta novela de Manjate (tomo a obra, para mim, como novela), este diálogo se estende. Embora sem muita ousadia, verificam-se, aqui e ali, expressões bantu como em ‘‘não havia homem mais cobarde que o Sthoe, um mambatxi’’, ‘‘o açúcar para adocicar o refrigerante maheu e a mbaula, o carvão mineral das terras de Moatize’’; expressões de inglês em ‘‘mais soft, sem ignorantes a lixar tudo…e não me interessa nada disso; fuck’’; e expressões asiáticas em ‘‘efusiva num homem sabido de gestos curtos e comedidos. «Boanar! Assalam Alaikum wa Rahmatullah!» «wa Alaikum Assalam wa Rahmatullah, Salim!» «Allah é Grande!».

Esta baralhada inter-linguística não deve ser vista como um mecanismo voluntário e propositado desencadeado pelo autor. Antes como a representação do nosso panorama sociolinguístico. É que nós, moçambicanos, falamos assim mesmo, tal como disse, em dois versos, na faixa ‘‘Moz we on’’, o espontâneo e malabarista Duas Caras: ‘‘português é importado, às vezes falo errado/ porque em casa é só changana então tá tudo misturado/’’.

Entrementes, mais do que esse fenómeno de importação linguística, frequente no grosso dos textos moçambicanos, a obra ‘‘Rabhia’’ apresenta uma novidade linguística: o labor do autor com a sintaxe.

Geralmente, produzir um texto com frases simples e breves usando a pontuação é o caminho seguro e infalível para o alcance de um texto coeso. Quem se lança na produção de um texto com frases longas e repletas de complementadores (que…que…que, para…para…para) geralmente cai no ridículo, no chato, no asco linguístico. Mas Manjate, em várias ocasiões, lança-se, com muito sucesso, na produção de uma frase tão complexa que chega a formar um parágrafo. Vejamos:

‘‘Nesse ano aprendeu do vinho, às horas do almoço, ouvindo pela boca de um Padre de nome Miguel, um velhote português com mais de cinquenta Páscoas em África, a história das melhores castas, dos mais preferíveis vinhos que chagavam a casa paroquial e que o abade fazia questão de partilhar, nos almoços de domingo, com o então Vasco, o mais jovem seminarista de Zóbuè, jovem respeitoso e obviamente temente a Deus, até ao dia em que o Padre Miguel ouviu, como nunca ouvira escapando-se de quarto algum em terras africanas, o grunhido devasso e libidinoso de uma irmã de nome Piedade, responsável única pela saúde das margaridas e açucenas do prior:’’ (Manjate, 2017:13).

Toda esta construção frásica não regista a ocorrência de um ponto final ou ponto e vírgula, que marcassem uma pausa longa ou ligeiramente longa. É necessário muita técnica e empenho para produzir uma estrutura dessas e, ao mesmo tempo, manter a coerência discursiva, a lógica, embora construções desta natureza exijam uma alta capacidade de leitura e compreensão por parte do leitor. Outro escritor apaixonado por esta forma de escrita é Ungulani B. K. Khossa.

O fenómeno da tradução também é marcante nesta obra de Lucílio Manjate, também conhecido por Sthoe (risos). A dada altura, o curandeiro Muzivhi, prestando depoimento às autoridades, intervém numa língua bantu – que me pareceu ser Ndau – e o narrador mantém a fala original em Ndau do personagem, de acordo com a ortografia padronizada da língua. Contudo, o leitor que não conhece o código linguístico usado pelo curandeiro, só passa a ter acesso à tradução daquela fala através do personagem José Património, que actua como discípulo e intérprete do curandeiro. Portanto, não é o narrador quem nos traduz, muito menos a tipografia do texto (notas de rodapé ou glossários), mas os personagens no interior da diegese.

Outro dado, não necessariamente ligado à linguística, é a representação dos diálogos. Muitas vezes o escritor recorre às aspas. Contudo, há situações em que não há marcação linguística dos diálogos, seja pelas aspas seja pelo travessão; eles ocorrem de forma linear e enlaçada, tal como se dá em ‘‘Ensaio sobre a cegueira’’ de José Saramago. Vejamos:

‘‘Eu conheci a Rabhia ainda em casa da Margarida, a maior prostituta da Rua do Bagamoyo; ela andou a instruir todas aquelas miúdas. E os homens? Que homens? Os que interrogámos. Apenas o médico, conheci-o quando ambos frequentávamos a casa da Margarida. Mas só depois, quando a Rabhia foi expulsa, vim a saber que fornicávamos, quero dizer, envolvíamo-nos com a mesma mulher, no caso a Rabhia.’’ (Manjate, 2017:111).

Os fenómenos linguísticos que se registam nesta trama de Lucílio Manjate não se esgotam nos elementos que mencionei. Para se apreciar as demais qualidades linguísticas e literárias da obra, recomenda-se a sua aquisição.

 

IMPORTANTE: Esta crítica foi feita segundo a edição da Edições Esgotadas (2017) e sob a revisão linguística de Ana Maria Oliveira.

© Gerson A. S. Pagarache

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