Por Gerson
A. S. Pagarache
O pequeno trama de Lucílio Manjate
disfarça-se em narrativa policial para denunciar, não a vida vil da
prostituição, ou a ineficácia dos serviços de investigação policial, sequer a
violência sexual; mas a inércia e letargia de uma sociedade que, para
funcionar, para continuar ‘‘maningue feliz’’, como se refere na obra, ela
inventa um desequilíbrio, cria uma perturbação, orquestra uma morte. Só assim a
sociedade continua a funcionar, num ciclo vicioso, à procura do equilíbrio: a
resolução da morte arquitectada. A investigação policial é só um disfarce para
o ‘‘inglês ver’’. Assim é a nossa trágica vida. Essa revelação é feita pela
prostituta Margarida, quando se dirige ao polícia estagiário Bernardo: ‘‘Não
somos assassinos, mantemos a ordem. Rabhia morreu para tu renasceres, pensa
nisso’’.
Tal como o mundo inteiro, Moçambique é um
território multilíngue, onde não só coabitam línguas de origem bantu, como
também as de origem asiática, latina, germânica, entre outras. Assim, é uma
variável constante na literatura moçambicana, o diálogo entre a língua portuguesa
e as demais línguas. Nesta novela de Manjate (tomo a obra, para mim, como
novela), este diálogo se estende. Embora sem muita ousadia, verificam-se, aqui
e ali, expressões bantu como em ‘‘não havia homem mais
cobarde que o Sthoe, um mambatxi’’,
‘‘o açúcar para adocicar o refrigerante maheu
e a mbaula, o carvão mineral
das terras de Moatize’’; expressões de inglês em ‘‘mais soft, sem
ignorantes a lixar tudo…e não me interessa nada disso; fuck’’; e expressões asiáticas em ‘‘efusiva num homem sabido
de gestos curtos e comedidos. «Boanar! Assalam
Alaikum wa Rahmatullah!» «wa
Alaikum Assalam wa Rahmatullah, Salim!» «Allah é Grande!».
Esta
baralhada inter-linguística não deve ser vista como um mecanismo voluntário e
propositado desencadeado pelo autor. Antes como a representação do nosso
panorama sociolinguístico. É que nós, moçambicanos, falamos assim mesmo, tal
como disse, em dois versos, na faixa ‘‘Moz we on’’, o espontâneo e malabarista
Duas Caras: ‘‘português é importado, às vezes falo errado/ porque em casa é só
changana então tá tudo misturado/’’.
Entrementes, mais do que esse fenómeno de
importação linguística, frequente no grosso dos textos moçambicanos, a obra
‘‘Rabhia’’ apresenta uma novidade linguística: o labor do autor com a sintaxe.
Geralmente, produzir um texto com frases
simples e breves usando a pontuação é o caminho seguro e infalível para o alcance
de um texto coeso. Quem se lança na produção de um texto com frases longas e repletas
de complementadores (que…que…que, para…para…para) geralmente cai no ridículo,
no chato, no asco linguístico. Mas Manjate, em várias ocasiões, lança-se, com
muito sucesso, na produção de uma frase tão complexa que chega a formar um parágrafo.
Vejamos:
‘‘Nesse ano aprendeu do vinho, às horas do almoço, ouvindo
pela boca de um Padre de nome Miguel, um velhote português com mais de
cinquenta Páscoas em África, a história das melhores castas, dos mais
preferíveis vinhos que chagavam a casa paroquial e que o abade fazia questão de
partilhar, nos almoços de domingo, com o então Vasco, o mais jovem seminarista
de Zóbuè, jovem respeitoso e obviamente temente a Deus, até ao dia em que o
Padre Miguel ouviu, como nunca ouvira escapando-se de quarto algum em terras
africanas, o grunhido devasso e libidinoso de uma irmã de nome Piedade,
responsável única pela saúde das margaridas e açucenas do prior:’’ (Manjate, 2017:13).
Toda
esta construção frásica não regista a ocorrência de um ponto final ou ponto e vírgula,
que marcassem uma pausa longa ou ligeiramente longa. É necessário muita técnica
e empenho para produzir uma estrutura dessas e, ao mesmo tempo, manter a coerência
discursiva, a lógica, embora construções desta natureza exijam uma alta
capacidade de leitura e compreensão por parte do leitor. Outro escritor
apaixonado por esta forma de escrita é Ungulani B. K. Khossa.
O
fenómeno da tradução também é marcante nesta obra de Lucílio Manjate, também conhecido
por Sthoe (risos). A dada altura, o
curandeiro Muzivhi, prestando depoimento às autoridades, intervém numa língua bantu
– que me pareceu ser Ndau – e o narrador mantém a fala original em Ndau do personagem,
de acordo com a ortografia padronizada da língua. Contudo, o leitor que não conhece
o código linguístico usado pelo curandeiro, só passa a ter acesso à tradução daquela
fala através do personagem José Património, que actua como discípulo e intérprete
do curandeiro. Portanto, não é o narrador quem nos traduz, muito menos a
tipografia do texto (notas de rodapé ou glossários), mas os personagens no
interior da diegese.
Outro
dado, não necessariamente ligado à linguística, é a representação dos diálogos.
Muitas vezes o escritor recorre às aspas. Contudo, há situações em que não há marcação
linguística dos diálogos, seja pelas aspas seja pelo travessão; eles ocorrem de
forma linear e enlaçada, tal como se dá em ‘‘Ensaio sobre a cegueira’’ de José Saramago.
Vejamos:
‘‘Eu conheci a Rabhia
ainda em casa da Margarida, a maior prostituta da Rua do Bagamoyo; ela andou a
instruir todas aquelas miúdas. E os homens? Que homens? Os que interrogámos.
Apenas o médico, conheci-o quando ambos frequentávamos a casa da Margarida. Mas
só depois, quando a Rabhia foi expulsa, vim a saber que fornicávamos, quero
dizer, envolvíamo-nos com a mesma mulher, no caso a Rabhia.’’ (Manjate,
2017:111).
Os
fenómenos linguísticos que se registam nesta trama de Lucílio Manjate não se
esgotam nos elementos que mencionei. Para se apreciar as demais qualidades linguísticas
e literárias da obra, recomenda-se a sua aquisição.
IMPORTANTE:
Esta crítica foi feita segundo a edição da Edições Esgotadas (2017) e sob a revisão
linguística de Ana Maria Oliveira.
© Gerson A. S. Pagarache
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