Escrevo com os pés e com as asas - Entrevista a Otildo Justino Guido


Escrevo com os pés, e com as asas - Entrevista a Otildo Justino Guido
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Otildo Justino Guido
é natural de Inhambane e actualmente estuda Contabilidade e Auditoria na Universidade São Tomás, em Xai-Xai. É membro da Associação Cultural Xitende e um dos fundadores do Projecto Tindzila, o qual surgiu com o objectivo de divulgar e promover as diversas formas de expressão artística através da realização de eventos culturais mensais em Inhambane.
Além disso, Otildo, é, sem dúvida, um dos talentosos poetas moçambicanos da nova geração  e, no ano passado venceu o Prémio Literário Fernando Leite Couto; Poesia, 2ªedição; com a obra “O silêncio da pele”.


Esta entrevista nasceu de uma “conversa” descontraída ocorrida no diafragma da linha imaginária que rega o espaço e o tempo.
Boa leitura!!

1. Quem é O. J. Guido?
Otildo J. Guido é um pássaro aprendendo a ciência do voo. Ou uma flor tacteando o infinito. Ou ferida da água ensaiando a engenharia da dor do tempo. Ou lâmina rasgando ao meio as duas partes da solidão. Ou a palavra impossível de se expressar. Ou será mesmo Um Moçambicano Qualquer?

2. De onde vem e para onde vai?
Nasci entre as paredes maternais da Terra de Boa Gente, no ventre da Cidade da Maxixe; onde os coqueiros aformoseiam a varanda onde Deus espia o mundo, e o coco remedia a doença da fome; e vou para onde os meus pés conseguirem chegar…

3. Quando e como começa a se interessar pela escrita?
Antes de ser corpo, eu era palavra, e assim se fez a obra. Tudo começa quando tudo termina, porque não há nada que vem do nada; eis o remate que me empurrou para dentro da escrita – da escrita da palavra não como ciência, mas sim como grito de socorro aos deuses que se escondem nas entranhas do papel – já se fazem sete anos que me embati com essa doença da palavra. Entrou-me para o fundo da alma, nesse espaço onde habitam os mais sinceros vazios do ser. Onde tudo é silêncio. Desde o tempo em que não havia tempo, me fui construindo aos poucos com ajuda de muitas aves, e desta família que ultrapassa qualquer fronteira do sangue, cujo nome é Xitende…

4. Para ti o que é literatura?
Literatura é uma miúda escura, magra, linda, de dreads, com oito pintas castanhas nos lábios, com espinhas no rosto, que sofre de problemas de vista, e de sinusite e asma, de um vírgula sessenta e cinco metros de altura, que se irrita por qualquer coisa, de coração de anjo, de um sorriso encantador, que mora no Bairro 11 da Cidade de Xai-Xai, perto da TDM, depois de passar duas casas à esquerda como quem vai para onde se está a instalar a UCM. Está bom assim? Ou preferes que eu diga simplesmente que literatura é a miúda que eu amo?


5.Escreves com a mão, o coração ou com a alma?



Escrevo com os pés, e com as asas; porque numa parte de mim, moram as aves e a noutra parte moram o tempo, a água e a morte…


6. Como encaras o processo criativo?

É aguardar toda vida por uma vida que chega morta. É procurar dizer a coisa indizível. Dizer tudo numa única letra. Exprimir a pele e jorrar sobre o papel o fogo que percorre as veias do cabelo. É abraçar-se profundamente por não ter alguém para abraçar quando o sol se põe, e que entenda que a noite é uma luz assombrando o poema. É introduzir a mão dentro da cabeça e arrancar brutalmente todo silêncio que as palavras não conseguem dizer. Processo criativo na verdade é morrer sem nascer…

7. Quais são os melhores ingredientes para um bom poema?

Um poema é como uma casa, mas feita por palavras; conheço apenas um ingrediente para construir um bom poema: loucura.

A loucura deve ser encarrada como ela é: a forma desnatural das coisas. A tentativa de fazer a alma falar pela boca da carne…

8. Qual é a porta para o poema? (Pergunta retirada do poema de Britos Baptista)

A porta para o poema é a morte, mano Britos…

9.Se pudesse escolher um lugar ou tempo para viver, qual seria?

Escolheria um lugar sem lugar; um tempo sem tempo. Onde tudo existe sem precisar existir… Mano, conheces Madaukane?

10. Que pensas dos prémios literários?
Os Prémios levam à luz, principalmente os novos escritores sem condições para publicar as suas obras. Foram criados para enaltecer a qualidade de obras literárias e destacá-las de acordo com certos critérios que os moldam.
Mas há que se levantar alguns aspectos que põem em causa a credibilidade dos Prémios; e olha, existem Prémios sérios, organizações que levam esse trabalho muito a sério, e existe, por outra parte, certas pessoas que acabam sujando o nome de todo esse universo de Prémios, porque querem sempre tirar proveito deles, e isso é natural, em todas as áreas da vida humana existem os parasitas que infectam toda a cadeia ou estrutura social; é preciso andarmos com um pente fino no bolso; ou uma lâmina; ou machado; ou mesmo catana para cortarmos da raiz essas ervas daninhas.

Devemos perceber que Prémios não é um jogo político, racial, regional ou de amiguismo. Prémios são barcos que navegam por cima do tempo, ou deveriam navegar…

O. J. Guido
11. Para finalizar, que conselho deixas para os poetas/escritores da nova geração?

Temos que criar pontes entre a palavra e a nossa cultura. Temos que falar das nossas coisas. Dessas coisas que conseguimos sentir ou ver; que conseguimos apontar com o dedo. Temos que registar o nosso tempo, porque ninguém fará isso por nós. E temos que levar a nossa casa para o mundo. O mundo está com sede de nós, vejo isso em seus olhos que fingem não nos ver…


Entrevistado por Fernando Absalão Chaúque

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