O Quimberlito e a Laurentina - CENA II



O Quimberlito e a Laurentina - CENA II




Nos olhos, ainda borbulhavam lágrimas que escorriam, em rolos grossos, as paredes da face aos lábios, a gosto de sal – acre e azedo, sob o rosto da Soninha.

De olhos cerrados tentava esvaziar a mente, mas era tudo em vão; a dor borbulhava do mesmo lugar como um canudo de água rompido. Naquela época do ano, as noites não eram tão frias, dai que sentiu um flanco de brisa húmida chegando em sopro, com uivos, e simulou agasalhar seus filhos pelo pedaço da capulana.

     Enquanto se iam embora, a escuridão tornava-se densa, fácil de se ocultar por suas traseiras. Óbvio, outro mundo denso de sombras explodia pela frente; e a cidade permanecia imóvel na distância; uma silhueta iluminada por uma luz alaranjada, cada vez mais ténue à medida que se ausentava nas suas emboras. Enquanto perseguiam o asfalto, grilos minúsculos saltavam de lés-a-lés; e o txopelista dirigia depressa demais que tampouco Soninha vira que um morcego que bailava na direcção contrária se embatera contra o txopela, frontalmente.

– Procurou a morte! – disse o txopelista se referindo ao morcego; no mesmo instante depois que ouviu um khó, Soninha ampliou o soslaio, olhar tangente ao peito do txopela e o relógio bombeava quase meia hora para virar dia seguinte, desinteressando-se da fala do txopelista como se não tivesse ouvido.

No umbral da porta, repousava deitado no chão, o Max, cão de raça feito um leão; permanecia ali até as primeiras horas como uma atalaia vigiando os pais da Soninha. Na parte interior da casa, reluzia o brilho da luz meio ofuscada por detrás da cortina, sinal de que ainda estavam acordados, – era um xiphefu, garrafa contendo líquido combustível e provido de fio torcido de linho para iluminar, quem sabe ensaiavam outras posições de fazer amor.

Com a luz do farol do txopela, Max soergueu-se rosnando, com os pêlos do dorso inchados, como se o vento soprasse na sua direção, e cada vez mais se enervava com o número de pessoas que se ausentavam do interior do txopela.

Ainda aos soluços silenciosos, Soninha chamou pelo Max; quem sabe para o acalmar; que a reconheceu pela voz imediatamente, bamboleando a cauda em sua direcção farejando-lhe os pés; abeirou-se, seguidamente, aportadando golpes gritando pelo nome da mãe com uma voz transtornada, que coincidentemente despertara com o rosnar e latir do Max, enquanto o sr. Afonso ronronava de cansaço dos vaivéns do amor.

Transtornada, mãe de Soninha, se auto-questionava se devia perguntar o que terá acontecido ou diria sem rodeios! No fim, decidiu guardar as perguntas para si mesma.
Soninha não dizia palavra; como se não tivesse algo por dizer. Preocupava-se em transladar as trouxas para o interior da casa: uma mala e uma mochila do colo, talvez com as vestes do Igor.

Max farejava nos pulsos do Igor quase a tropeçar de um sono profundo naquela escuridão profunda, embriagada e crivada de estrelas. Joyce rezingava, ainda de olhos cerrados, nos braços da avó quando foi deixa-la na esteira. Corrido pouco tempo, com o farfalhar das coisas, desperta o sr. Afonso com ares de preocupação.  

– Que aconteceu, filha? – inqueriam coincidentemente, os pais da Soninha, os porquês, visto que não dizia palavra sequer. Visivelmente tensa e inconsolável, não deu para descrever os terríveis precedentes do sucedido, simplesmente, ela retomou seus prantos e soluços indo-se deitar na esteira, entre seus filhos, fechou os olhos e logo adormeceu, sem antes esclarecer os antecedentes.
Dia seguinte, pouco mais de oito horas, o sol soltara-se das teias da imensidão, crescera alto e cintilante, até passava da meia hora, era quase um quarto para as nove, olhando pela altura que o sol portava, ou mesmo estimando pela sombra que reflectia a mafurreira no meio do quintal. A dona Teresa, mãe da Soninha, terminara de varrer o pátio, após voltar da horta. Dentro do quarto onde a Soninha passara a noite com os seus dois filhos, Igor e Joyce, sentia-se o calor do sol quando dona Teresa, mãe da Soninha, gritou pela filha: - Soninhaaaa.

Quando se soergueram, tanto Igor, Joyce e a mãe portavam vincos da esteira nas laterais da face e nos braços, quem sabe nas coxas também Soninha as tinha como os filhos, visto que a capulana ocultava essas partes.

A dor golpeava-a a uma tempestade acompanhada de trovões; sua alma estava despedaçada, embora aliviada, pois sepultara os xingos do Quimberlito, homem com quem viveu uma década de vida e teve dois filhos! Nada importava. Precisava de uma paz!

Obviamente que não conseguira resistir às agruras do seu consórcio. As vizinhas acharam dela uma fracassada, provavelmente a mãe também achara – abandonar o lar!
Depois de lavar o rosto e limpar a boca com a mulala, os pais, convocaram-na para uma assembleia, na qual contaria o sucedido detalhadamente.
Igor e Joyce foram brincar para a casa vizinha com os netos da dona Selmira, filhos gémeos da união que mantinha às escondidas o Sr. Afonso com a casula da dona Selmira, Saquinane, que até hoje omite-se a veracidade dos factos a dona Teresa, que na sua inocência sabe nada. Esse ultraje da regra de fidelidade conjugal se dá a quase uma década quando de sempre a dona Teresa sofria o cansaço de idade e recusava fazer amor. Sr. Afonso amantizou-se com a Saquinane, filha da Selmira, sua vizinha quando tinha dezasseis anos de idade, mas os seios tinham começado a aparecer. Quando se apercebeu que a barriga da Saquinane se avolumava com a gravidez, mafohlane, como era conhecido o Sr. Gunias, marido da Selmira, designação que se usa para designar os que se vão as terras de Madiba ilegalmente, ameaçou manda-la embora de casa caso não dissesse quem lhe engravidara.

No mesmo dia, Saquinane fingiu ir pedir fogo na casa da dona Teresa para piscar olho no marido e contar-lhe da provável incursão do pai. Corrido muitas horas, quando o sol ia descansar no profundo do abismo, sob protecção da escuridão, Saquinane, deslocou a porta calmamente e saiu andando pela ponta dos dedos pondo um pé atrás do outro silenciosamente e prosseguiu pelo quintal afora, sem o som das chinelas fazendo chape-chape.
Na manhã seguinte, Sr. Gunias acordou com o rosto coberto de rugas, sinal de que não dormira a noite inteira pela situação da filha, quem sabe passou noite inteira culpando a mãe pelo desacompanhamento da filha. Seguidamente, berrou o nome da filha e a obrigou que falasse quem era o responsável por aquela desgraça.

Saquinane aturdida quase confundia os pensamentos; e um pequeno fio de suor escorria no sovaco direito como uma mosca andando; seus lábios permaneciam cerrados, depois começaram a tremer como se não conhecesse a própria língua dos homens. Seguiu-se um silêncio prolongado, mas o ia se enervando paulatinamente como um cachorro e gato, abriu a boca e assumiu que ter-lho-ia sido estuprada por um jovem que não o conhecia aquando do roubo que sofreram a meses atrás, tal como havia acordado com o Sr. Afonso, para ocultar a infidelidade, e que não tenha decidido contar a ninguém pelo receio.

Pareceu verídica a expressão facial da filha ao longo da explanação, que o Sr. Gunias acreditou, e uma onda de lágrima se levantou, depois outra, esparramando-se na orla do olhar e transbordou hectares do seu rosto, no movimento impetuoso da dor e culpa, pelos remorsos!
     Na sala, sentada ao lado da mãe, pernas rigidamente esticadas, braço direito reclinado, Soninha desatou a tecer retrospetivas do sucedido, aos pais, numa intensidade de lágrimas quase ininterrupto que se obrigou, tardiamente, a arregaçar a ponta do lenço pelo qual cobria seus cabelos destrançados para enxuga-las; alguns torrões incidiram sob capulana em pequenos círculos densos como nódoas de sangue. 


AUTOR: Alerto Bia

Fernando Absalão Chaúque

Professor, escritor, poeta e blogueiro. Licenciado em Ensino da Lingua Inglesa. Autor de ''Âncora no ventre do tempo'' (2019) e co-autor de ''Barca Oblonga'' (2022).

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