O Quimberlito e a Laurentina
Era sexta-feira, vulgo dia do homem, ao entardecer, céu meio coberto de nuvenzinhas soltas e dispersas. No poente, o sol ocultara-se por detrás de uma nuvem espessa com espectro de chamas da fogueira queimando os céus. Tal dito inferno – pensou Quimberlito. – A vida é uma farra… – murmura baixinho para si mesmo despedindo-se da sua amada, Soninha, cobrindo-a de beijos nos beiços.
Sempre que chega a sexta-feira um
turbilhão de pensamentos pantanizam-no insistentemente, “… preciso aproveitar bem a vida, pois ela é curta e incerta; … preciso
gastar o dinheiro enquanto vivo, antes que intrusos apoderem-se pelo que com
suor lutei para conquistar; … preciso aproveitar a vida ainda em vida, pois
morto não se aproveita nada…”.
Soninha embalada nos doces beijos, deixou seus pensamentos
vagarem imensuravelmente enquanto contemplava o céu enrubescido.
- Provavelmente
seja o fim dos tempos se aproximando sorrateiramente – pensou profundamente com
a saída do seu esposo que ultimamente não dá conta da casa, nem dos filhos, nem
de nada… vive nos bares.
Quimberlito, jovem da era tecnológica,
profundamente influenciado pelo modernismo. Vive aos apuros. Leva a vida
leviana. A vida é agora. E vive o agora. Não se inquieta com o amanhã, pois esse
é incerto. Conheceu a Laurentina, sua amada estéril e dispendiosa aos quinze
anos de idade quando frequentava noites com um grupo de amigos, agora
refugiados estão nas terras do Rand [África do Sul], após perpetrarem crimes
dolosos à sociedade.
Infalivelmente, aos
finais de semana, vai ao bar transitar noitadas imberbes mergulhado nos copos
de cevada, sorvendo ao volume do seu bolso remunerado. A decantação da espuma
sobra para seu bigode que se vai espumando à brancura da neve. Quando a cevada
ficasse miúda, conseguia enxergar o fundo do copo, esguelhava no seu olhar
arregalado ao garçom mandando comparecer mais uma Laurentina com seu dedo
indicador no ar. Idolatrava aquele seu jeitinho silencioso de solicitar uma
assistência. O garçom, ágil nas suas tarefas, acorria com a bandeja encervejada
pelos pulsos junto à mesa do Quimberlito. Não se havia tempo a malbaratar
diante do Quimberlito, despontava a boca da garrafa com outra garrafa celada,
técnica caseira dos bares para não se esperar pelo abre-garrafas. Sorria-lhe a
vida. Pagava a conta por inteiro e ainda sobravam-lhe alguns dinheiritos para
comprar alguns sweets aos filhos. Embebido e com suspiros de bem-estar, apoiava
uma das mãos ao joelho e a outra à mesa esgueirando-se cautelosamente, com sua
consciência tonteada e trémula. Ventava no seu andar desalinhado, embora
cauteloso para não precipitar-se sobre a terra e
correr o risco de dormir ao relento.
De volta à casa, emitia vozes esganiçando
vizinhos e maldizendo em voz desvairada, rouca e sufocada “segredo dos bêbados
para desenganar os bandoleiros noturnos”; sempre que num ímpeto se deparasse
com uma silhueta semelhante ao espectro de uma pessoa cantarolava o refrão do
saudoso músico, da velha guarda, Abílio Mandlhaze: “ – juro palavra de honra sinceramente vou morrer assim, vou morrer
assim…”.
Até então, não se sabe por que só os
bêbados têm o apanágio de andar por alta noite sem cair nas malhas dos
bandoleiros, mesmo tendo alguns meticais no fundo escuro dos bolsos. No enorme
relógio pendurado na parede pintada à cinza badalavam vinte e duas horas; a
pequena família debruçada à mesa ouve um realejo por parte de fora no portão –
era Quimberlito contorcendo nos seus ziguezagues rompendo os quintais.
– Soninhaaa, Soninhaaaaa … — gritou o
nome da esposa aos balbucios quase inaudível depois de se esbarrar no montão de
areia que comprara há anos para erguer uma alvenaria.
–
Ah, meu Deus! — Exclamava Soninha, com voz de penosa e dececionante.
– Vamos embora
– disse seguidamente ajudando o esposo a se reerguer içando-o pelo braço.
Ofegante e debilitado, Quimberlito cheirava a cevada,
inclusive o próprio andar pesava-lhe e a cevada ganhara conta dele
paulatinamente que o fazia respirar fora do ritmo
normal e com dificuldade. Soninha com o auxílio do seu primogénito, Igor,
arrastam-no para os aposentos junto à poltrona.
A Joyce, irmã casula
do Igor, nunca ouvira uma boa noite nem um beijinho do pai na testa quando
fosse sexta-feira ou uma tolerância; sempre pregava seus olhinhos minúsculos na
sua ausência.
Igor ficava todo aviltado, enrubescido e
envergonhado de tanto seu pai amantizar com a Laurentina nos bares. – Já
excedera os limites! – Pensou para com os seus botões.
No corredor, Soninha, resmungava ao
esposo: – Vai ficar só… estou farta… entediar-nos só…
– Fecha a tua fossa, mulher! Cada um é livre
para fazer o que quiser. A vida é uma mala… – retorquia Quimberlito aos balbucios
quase inaudíveis.
– Vou-me embora
– advertiu Soninha escorrendo-lhe uns rolos de lágrima em ambos cantos dos
olhos, e uns fios da mucosa fluíam-na pelas fossas
nasais e deitavam-se aos pingos no soalho.
Igor lançou o olhar para o semblante da
mãe que chorava o que tinha que chorar amargamente e disse: – Vai comigo, mãe. Soninha não disse
palavra, tentou limpar as lágrimas do rosto, mas sem sucesso; a dor era intensa
como o fogo do inferno! – Transbordavam-na as lágrimas quanto mais tentasse
limpa-las.
–
Vai, ninguém está forçando você ficar… leva tudo, até os filhos… vai! –
Balbuciava Quimberlito. – Isso são manias
de mulheres, quando dadas regalias demais, insinuam que vão se embora, vai…! –
Continuou Quimberlito.
Inconsolável Soninha, ajuntou suas
roupinhas e dos filhos, chamou um txopela, e se foi embora com os filhos.
Inapto e ainda sombreado de alucinações da
Laurentina, Quimberlito cerrou os olhos e, não deu conta a saída da esposa e
filhos. Dormiu longamente a noite escura ateada pelas estrelas uma a uma, que
só levantou-se quando os pêndulos do relógio sob suas cabeceiras aproximavam-se
sorrateiramente à hora nove! – quando alguns raios solares interiorizaram-se violentamente
por seus aposentos através dalgumas fendas na parede e incidiram diretamente a
sua retina.
– Diabo!
– Disse Quimberlito, enrolando-se na cama, ora para direita ora para esquerda,
com a sua voz grossa e desafinada pela Laurentina.
E para a sua grande surpresa, acordou
ofegante e fatigado como se tivesse subido muitos degraus de escada, chamou
pela mulher: Soninha, Soninha…! –
Gritou bem alto que sua voz reverberou pelo quarto, sala, saiu pela ventilação
até ao pátio, mas ninguém respondeu. Esforçou-se e ergueu-se avançando a um
passo cadenciado como um camaleão, olhou devagar toda a sala, a seguir
sentou-se na poltrona, como se não aguentasse mais ficar de pé ou sentisse
vertigens, ou porque estivesse fatigado.
– Parece
ter enxaquecas – disse para consigo mesmo espremendo a cabeça de olhos
cerrados.
Depois de transitar um bom tempo, talvez
de “flashback”, mordeu-se os lábios segurando-se a cabeça pela testa com o
rosto amarfanhando e começou a chorar inconsolavelmente como uma viúva.
Autor: Alerto Bia