Vidro Rasgado - Capítulo 6

Vidro Rasgado - Capítulo 6
Vidro Rasgado - Capítulo 6
Vidro Rasgado

Leia o Capitulo 5



   Ao telefone e no seu gabinete, Delegado Nevinga dialogava com um indivíduo de voz rouca e grave que se assemelhava com a dos consumidores do whisky, o delegado identificava o indivíduo pelo atributo "chefe" .

   - ...não há problemas, chefe, apenas apareceu um imprevisto mísero que quer dificultar o andamento do processo...

   - O tal imprevisto é uma ameaça, pois não? - Perguntou o interlocutor do delegado com voz calma e solitária.

   - Não é nada que eu não possa resolver!

   - Assim espero, não quero aumentar a lista dos meus pecados; o paraíso me espera! Dizem que almas impuras mancham o branco celestial. - Riu após proferir tais palavras.

   - Fique descansado chefe, a trombeta só irá soar caso o imprevisto prossiga com seus imprevistos e...

Antes que o delegado completasse a fala, a porta do seu gabinete era agredida por um indivíduo que pedia licença.

   - Me desculpe chefe, vou ter que desligar para atender alguém.

   - Tenha bondade!

Delegado desligou o dispositivo móvel e indagou em voz alta:

   - Quem é?

   - Quím.

   - O imprevisto. - Sussurrou e avivando a voz disse: - Entra.

   - Obrigado, senhor.

   - Honra-me sobre maneira a tua presença no meu ínfimo e mísero compartimento...

   - Poupe as formalidades comigo senhor, deixe-as para os que gostam de tal palavreado. A mim basta as palavras simples e compreensíveis.

   - Não te inferiorizes... a que se deve a tua visita repentina ao meu gabinete?

   - Tem algo que me apoquenta o juízo e julgo ser relevante questionar ao senhor antes que eu me meta em becos sem saídas... O que o senhor sabe acerca do processo "Operação Vidro rasgado"?

   Delegado engoliu aquela questão a seco, enquanto tentava fabricar as respostas convincentes para dar aos órgãos auditivos do "imprevisto".

   - Quím meu bom soldado! Como havia lhe dito esse assunto é de gente graúda, não queira chamar azar para sua vida!

- Isso é uma ameaça senhor? - Encarou os olhos do delegado carregando uma dose de coragem.

- Longe de mim... Apenas é um conselho dum amigo que não quer perder os seus.

- Delegado! Deixa de me enrolar e vai directamente ao ponto. - A impaciência começava a namorar a tranquilidade do Quím.

- Não é isso meu bom jovem, a questão é que se lhe dou os detalhes da operação corres risco de vida e eu não quero carregar esse fardo...

- Esta bem, entendo suas palavras como um sinal de não cooperação.

Quím saiu do gabinete do delegado enfurecido e desapontado com aquele que tinha muita consideração.

- Mais essa! Não gosto de pensar no pior mas parece que o Quím deve inexistir. - Sussurrou delegado, organizando sua estratégia do abate.

Quím caminhava em direcção à saída do edifício, seu expediente tinha chegado ao fim, quando no fundo do corredor ouviu alguém chamando pelo seu substantivo.

- Não se esqueceu do nosso combinado, pois não? - Angelina indagou.

- Poxas! Tinha me esquecido por completo... O dia não me foi agradável, podemos conversar amanhã?

- Não. - Foi directa e objectiva.

- Está bem, enquanto caminhamos para o estacionamento te conto o que presumo saber.

Caminharam de braços cruzados, num estilo de companheirismo que só pessoas apaixonadas e compromissadas conseguem representá-lo com mestria. Enquanto os pés seguiam a lentidão dos passos, Quím ia relatando suas suposições para aquela que desadormecera a "ferida que desatina" no seu pulmão esquerdo.

- Há coisas estranhas acontecendo, ultimamente o delegado anda misterioso para não dizer que esconde uma sujidade debaixo das nossas vistas...

- Será? - Angelina não queria acreditar ou preferia se enganar, tinha o delegado como sua fonte de inspiração, apesar de ter algumas desavenças com o mesmo, o via como um exemplo a seguir.

°°°°

     Delegado Nevinga vinha duma família pobre que vivia na zona rural, sétimo filho dum universo de nove filhos que sua mãe tivera, dos quais cinco partilhavam o mesmo código sanguíneo do progenitor e os restantes três dos quais o delegado fazia parte, eram frutos de relações extra-conjugais.

     Nevinga sentiu o dissabor da vida ainda no ventre da mãe, seu pai, um alcoólatra do caraças, brindava a mulher com sessões de pancadaria sempre que voltava da jornada do seu desporto favorito, virar copos e ganhar a embriaguez como pontuação máxima.

Nevinga cresceu no meio da penúria sem saber o que é ter o amor e o calor paterno, pois o pai o abandonou ainda na fase da metamorfose ventral. Ele cresceu com esperança de um dia conhecer o pai, mas tal anseio não passou duma miragem que lhe nutria a mente até completar uma década e cinco anos, após isso mergulhou no mar de estudos de corpo e alma para sair da situação paupérrima que vivia. Com dezoito anos entrou na academia policial, passado seis meses foi graduado e teve uma posterior colocação.

 Trabalhou arduamente fazendo a sua carreira brilhantemente até atingir o lugar que ocupava passados vinte anos de muito esforço e empenho.

°°°°

- É verdade, há muito fumo nesta esquadra mas preciso descobrir a fonte da fogueira para dispersar o fumo. - Afirmou Quím e prosseguiu. - Creio que o delegado está a esconder pontos chaves da minha suspeita... encontrei um envelope amarelo com documentos sobre a investigação que o delegado diz ser "sigiloso", mas me roubaram antes de eu os ler...

- Os tais documentos continham algo relevante?

- Não sei, como dizia: não tive oportunidade de os ler.

Continuaram o diálogo durante vinte minutos, até o verbo se diluir quando Angelina olhou para o seu pulso esquerdo e o rosa do relógio lhe revelou que as horas não paravam de galopar.

- Já é tarde, amanhã tenho que acordar cedo, continuamos amanhã com a conversa.

Quím consentiu a preocupação e o cansaço estampado na face da Angelina e pediu um favor:

- Dás-me boleia? É que o meu motorista está de folga. - Risos perderam-se no ar. O motorista referia-se ao Zé, visto que Quím não tinha automóvel.

- Claro, mas não repare na minha desorganizada organização. - Afirmou Lina.

Quím respondeu afirmativamente com a cabeça, escusou-se de palavrear, pois sabia que tal ensejo da Angelina seria impossível de se concretizar. Caminharam até um Toyota Corolla Crystal Light prateado, Angelina desbloqueou-o com um dispositivo que tinha na mão e entraram.

Os olhos do Quím inspeccionaram o interior do automóvel e se deparou com uma desorganização autêntica, arregalou os olhos e olhou para Lina surpreso.

- Não disse para não reparar...

Olhou mais uma vez para o interior do carro e comtemplou a elegância da Lina, custava-lhe acreditar que o carro de uma mulher que emanava tanta beleza podia estar naquela situação; revistas espalhadas por todos lados, assessórios de maquilhagem dispersos nos assentos e antes que ele se sentasse, envergonhada Angelina tirou algo do assento do companheiro.

- Isso é meu! - A timidez vestiu o seu semblante deixando suas bochechas corroadas de vergonha.

- Não vi nada. - Afirmou Quím tentando desrosar as bochechas da colega.

- O quê?! - Perguntou meio duvidosa.

- O vermelho da calcinha. - Afirmou olhando para colega com olhos desejosos por cometer pecados prazerosos.

- Segura-te pião.

- Não vou te obrigar a nada!

- Assim espero... Mas tens carta branca para tal. - Cogitou silenciosamente.

Silencioso Quím olhou para aquela que despertara seus desejos carnais, e permaneceu silencioso naufragando em seus pensamentos até Angelina ordenar o Corolla a se movimentar.

- O motor está ainda em dia. - Afirmou Quím para quebrar a situação embaraçosa que tinha se instalado naquela viatura.

- Desde quando entendes de motores? - Lina perguntou sarcasticamente.

- Há muitas coisas que não sabes sobre mim...

- Como?

- Não quero me expor ao ridículo.

- Olhou para perna da Lina que estava exposta para quem quisesse ver e rever.

- Qual é o jogo dela? - Pensou olhando fixamente naquela perna esquerda e branca como o resto do seu corpo.

- Então não tens nenhuma diferença com o delegado. - Afirmou convicta.

- Boa estratégia Lina, mas não vais conseguir... estou atento.

O automóvel já estava em movimento passados vinte minutos desde que estavam no seu interior, quando de repente Angelina estaciona-o numa avenida escura em frente a um edifício grande vestido do negro nocturno.

O edifício carregava traços ocidentais da idade média em sua estrutura, revelando que o tempo contemporâneo ainda respirava as cicatrizes do passado bem vivo no presente.

Atónito Quím olhou para Angelina que se contorcia sem parar.

- Por que paramos?

- És cego ou o quê?

Angelina estava possuída. Quím sentiu um calor intenso lhe consumir o corpo, ao ver Angelina se desassociando das suas vestes e aquele corpo esplendoroso que inúmeras e incontáveis vezes sonhou com ele em seu leito nas infinitas noites solitárias, estar exposto aos seus olhos apaixonados era a realização dum sonho intangível pelos desejos.

Angelina horizontalizou o assento e Quím sem muito pensar, atirou-se em cima dela possuído por um espírito pervertido. O automóvel assistia aquela muita vergonha sem nada fazer, pois não tinha auto-controlo do seu corpo.

Entre beijos e amassos, os dois iam libertando suas vontades que há muito eram aprisionados, e antes do coito se consumar a voz do Quím soou:

- Não posso fazer isso!

- Porquê? Não sou atraente? - Pensou.

- Não estou protegido. - Afirmou desanimado, pois pensava que ia perder a oportunidade de concretizar seus inúmeros sonhos com aquela mulher.

- Também não trago preservativos. Então como vai ser?

- Não sei...

- Lembre-se que nunca se recusa o calor de uma mulher escaldante...

- O que su-sugeres? - Gaguejou.

- Depende de ti.

Sem pensar "twice" como dizem os ingleses, Quím afogou o gasso na fonte vital do prazer, perdeu-se e achou-se inúmeras vezes naquele mar de fantasias agradáveis. Entre delírios e suspiros, ambos satisfaziam as necessidades fisiológicas felicíssimos, até ouvirem algumas batidas no vidro da porta do motorista.

- Poxas, um gajo já não pode se satisfazer a vontade?! - Pensou Quím.

- Também queremos! - Eram vozes de dois meninos de rua que espreitavam maravilhados para o interior do automóvel.

Quím ignorou aqueles meninos continuando seu exercício, mas Angelina já estava desconfortável e tinha perdido a sede.

- É melhor pararmos.

- Para quê parar se está bom?

- Isso foi um erro... um erro que não deve voltar a se repetir.

Quím desconectou o seu corpo com o da Angelina, ocupou o seu assento e olhou para Angelina com um ar sério misturado com espanto, não queria acreditar nas palavras que ouvira: "Isso foi um erro..."

- Haja muita paciência para entender mulheres, porque não é fácil. - Afirmou.

Enquanto isso, Angelina recuperava a sua sanidade mental resgatando suas vestes que tinham abandonado seu corpo. Ligou os olhos mecânicos que estavam adormecidos e de novo ordenou o automóvel a marchar.

Após longos minutos silenciosos, ouvindo as vozes do vento e as conversas íntimas que os pneus do Corolla tinham com o asfalto, Angelina se arriscou a quebrar aquele ar estranho entre ela e o Quím.

- Uh uhhh! Vais ficar aonde?

- Podes me deixar em qualquer lugar, basta que não haja erros provocados.

Quím disse tais palavras com o semblante murcho e com os olhos anunciando uma tempestade acompanhado de trovoadas mas lembrou duma frase mágica que ajuda os homens em momentos como aqueles: "homens não choram".

Sua vontade era chorar todas lágrimas que compõem os oceanos do mundo, mas notou que aquela mulher não merecia suas águas salgadas. Mandou embora a tempestade mas as nuvens cinzentas permaneciam vivas em seu rosto.

- Deixe-me na avenida Covil dos lobos. - Afirmou.

- Mas aquela avenida é perigosa.

- A preocupação fez-se patente no rosto e nas palavras da Angelina.

- Perigoso é errar conscientemente e fazer imprevistos previstos.

- Deixa disso Quím, te deixarei na Borboleta Azul.

- Tanto faz. - O desânimo era visível no seu rosto e talvez no coração.

- Não faz isso comigo!

Quím olhou para aquele semblante angelical e desenhou um sorriso imaginário no mesmo. Seus olhos brilhavam novamente e disse em pensamento:

- Não consigo me zangar contigo.

E como se tivesse lido o pensamento do Quím, Angelina esboçou o sorriso que fazia o verde dos olhos do Quím brilhar mais do que o sol numa tarde qualquer do mês de Novembro.

- Me perdoas?

Quím olhou para o escuro da noite através do retrovisor como se procurasse uma resposta para dar aos ouvidos daquela que despertara calor em seu corpo, olhou para o horizonte através do vidro frontal do Corolla e lembrou que guardar mágoas no coração é mesmo que carregar os problemas do mundo no seu íntimo, os pecados que não são seus.

- Claro que perdoo, mas com uma condição.

- Qual?

- Quero um beijo teu para poder dormir tranquilo.

- Deixa de histórias, masé vai dormir porque já chegamos na Borboleta Azul.

- Boa noite Lina.

- Boa noite Quím, tenha um bom descanso.

- Como vou ter um bom descanso se me recusaste um beijo?

Angelina travou o carro, Quím desceu e caminhou sem olhar para trás nas trilhas duma rua que o engoliu, desaparecendo na bruma nocturna da rua silenciosa. Angelina partiu rumo a sua residência na companhia do seu Corolla.

- O dia foi longo... - Cogitou Quím na companhia do sozinho na rua escura.

Após dez minutos que deixou o Quím na rua Borboleta Azul, o telefone da Angelina toca mostrando no visor um número não nominalizado.

- Como foi o plano? - Perguntou o suposto dono daqueles dígitos telefónicos.

- Fui uma óptima atriz que até mereço um prémio... - Gargalhou felicíssima.

- Não quanto ao prêmio, siga o roteiro que ele virá.

- Certo, então espero pelas próximas instruções.

O número desconhecido pelo aparelho móvel da Angelina desligou a chamada, deixando a proprietária do mesmo navegar nos pensamentos luxuosos de como iria gastar a bonificação do seu trabalho paralelo como atriz.

- Acho que vou comprar... mas não, já tenho ou preciso de uma nova... É muito caro mas...





Fernando Absalão Chaúque

Professor, escritor, poeta e blogueiro. Licenciado em Ensino da Lingua Inglesa. Autor de ''Âncora no ventre do tempo'' (2019) e co-autor de ''Barca Oblonga'' (2022).

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