Um Morador de Rua de Luxo
Andava eu a caminho dum encontro marcado com
alguns velhos amigos no Jardim Botânico, na baixa da cidade capital moçambicana
quando pela minha típica distracção dei-me conta de ter errado o caminho. Bem,
na verdade eu estava perdido mesmo, errar o caminho foi apenas uma boa desculpa
da minha engenhosa consciência para me fazer sentir menos idiota.
- Raios, que chatice! Porque isto tem sempre de
me acontecer? — Pensava desiludido comigo mesmo.
- Bom, só me resta perguntar, sim perguntar é
mais barato. Pelo menos mais barato do que gastar o crédito[1]
que programei para converter em megas[2]
mais tarde ligando para um amigo que para além de me achar idiota, me
tornaria numa figura humorística, pois, decerto que depois da tal pergunta eu
seria piada em todos os encontros. Ah! Não se assustem com o que eu disse em
relação aos megas. É que cá mede-se a
importância da pessoa pelos megas que possui no seu Smart Phone. Sim, sim, no meu país ficar sem megas ou dados móveis ligados hoje em dia é sinónimo de pobreza e humorismo,
o que não facilita muito com as pitas[3].
Mas eu não podia perguntar a qualquer um. As pessoas normalmente me
considerariam um autêntico idiota perdido, isso claro, se não me levassem ao
Balanço Geral[4]
como tantos daqueles gajos[5]
adultos que lá vão procurando suas famílias.
Ali em meio àquela rua parei contemplando
a estátua de Bronze dum Samora Machel, que o povo rogava por sua ressurreição
nalguma esperança que este saudoso presidente botasse fim ao caos na sociedade
moçambicana tomada pelo crime legalizado dum punhado de larápios estudados que
roubava o povo e dava camisas nas eleições como forma de que estes últimos os
homenageassem pelas suas boas acções da época duma luta armada que até hoje se
vive. E por algum motivo, se calhar paranóia minha, a estátua estava virada para
o lado onde nada de importante se passava senão o movimento frequente de
veículos, alguns prédios da classe média e um mar mais ao fundo e ironicamente
virado de costas para o conselho municipal e todas as outras instituições que
pilhavam os bens do povo, sim PILHAVAM.
Não sei quanto tempo fiquei ali pensando e
esperando um tipo com aparência de idiota para perguntar onde era o Jardim
Botânico e foi aí que...
- Boa tarde meu senhor. Desculpe roubar do seu
tempo é que gostava de saber como chegar ao Jardim Botânico.
- Aproxima-te aqui! - Disse o Tipo de aparência
idiota. Bom, na verdade estava mais para mendigo e xidácua[6]
do que idiota, mas quem se importa? Se calhar não eram tão distantes as
diferenças entre mendigos, xidácuas e tipos perdidos na cidade com idiotas,
certo?
- Aproxima-te mais. - Disse o tipo de
aparência idiota, me obrigando a inalar o bafo de álcool que libertava. O Tipo
parecia meio embriagado e vi que era perda de tempo perguntar a direcção de
como chegar a um local para um bêbado, pois decerto ele estava tão perdido
quanto eu. - Parabéns Sidel, mais uma ideia brilhantemente idiota. Eu devia ter
mestrado nisso nos nove meses que fiquei no ventre da minha prezada mãe. - Pensei
comigo mesmo.
- Deixa estar que eu chego lá sozinho. - Murmurei.
- Não, espere! – Insistiu. - Eu disse para que te
aproximasses a mim para olhares para onde olho de modo que vejas o local que
desejas. - O português fluente do Tipo de
aparência idiota, não se parecia nem um pouco com as roupas de morador de
rua que trajava e o saco de quinquilharias que levava consigo nas costas que condiziam
com a indumentária.
- Não, não, isto que trago nas costas não é droga
nem lixo meu jovem. - Adiantou o Tipo
ao perceber o olhar acusador com que eu olhava para o saco. - São apenas
algumas garrafas de água, a minha bebida e alguma roupa. Daí lembrei que a
tarefa dum sociólogo não era julgar, mas compreender a realidade. Bom, eu não
era um sociólogo propriamente dito, mas era uma boa oportunidade de ensaiar o
exercício da profissão.
- Onde moras?
- Vês o edifício da Administração de logística
financeira? Eu moro em frente ao edifício.
- Mas e a sua casa? A sua família?
- Deixe que te fale enquanto andamos até ao
Jardim, eu te levo até lá. - Agora eu tinha certeza, o português daquele tipo
era mais fluente que o meu e não sei como, mas o seu estar e a sua calma não
pareciam nem exalavam a morador de rua. Sim, sim, eu sei que assim como eu,
vocês pensavam que todos moradores de rua cheiram mal, mas o Tipo era diferente,
ele cheirava a perfume, parece piada, mas estava mais bem cheiroso do que eu.
Já atravessávamos a rotunda para o outro lado, o
lado do nada onde um Samora estático olhava.
- A minha família abandonou-me logo que larguei o
trabalho. Sabe, eu só estou aqui pelas desventuras da vida. Eu estudei em Cuba
e falo fluentemente Inglês, Francês e Espanhol. Vim para Maputo logo após o meu
regresso de Cuba, mas não sou de cá. Sou natural de Manica. - Caminhávamos lado
a lado, algumas pessoas olhavam-nos com estranheza, alguns mostravam preocupação
e alguns abanavam a cabeça como que dissessem: - pobre jovem, mais um dos
muitos assaltados na grande cidade Capital, onde só há um aparato policial para
manter ordem nas ruas quando há manifestações. Mas eu não ligava. Estava cada
vez mais interessado em ouvir a história do Tipo
de aparência idiota, aliás eu não ouvi as suas últimas palavras, mas ele
tinha retirado do saco algo embrulhado num papel. Era um B.I.[7]
e nele um senhor de meia-idade apresentável que respondia pelo nome de Dico
Aldimiro Nicos Siquatse.
- Tens um nome comprido hein!
- Cada um tem o nome que merece, rapaz — disse
Dico ainda gargalhando, na verdade tinha mesmo graça, pois ele era alto, para
não dizer comprido.
- Mas disse que a família lhe abandonou por ter
largado o emprego, mas porquê abandonar o trabalho?
- Na verdade eu não abandonei o trabalho,
abandonei a morte. Eu era atirador do governo rapaz e cansei de pegar armas para
tirar vidas por futilidades e mesquinhices políticas. A maioria da gente que
está aqui, morando nas ruas, não foge muito da minha história, mas pelos
preconceitos sobre os moradores de rua e as mentiras das matérias superficiais
e sem estudo em nome da audiência da mídia a sociedade nos vê de forma
distorcida. Na verdade ninguém nos vê ou entende, ninguém
entende.
- Enfatizou, Dico.
- Eu entendo. - Disse eu soluçando pela história
comovente que ouvia que parecia percorrer sobre minha alma.
Era como se eu tivesse sido e me enganado a vida
toda, pois eu via naquele momento muita complacência e coração naquele
morador de rua.
- Sabe quando eu disse que moro em frente ao edifício
de Administração Logística de Finanças?
- Sim, sim.
- No que você pensou?
- Que é onde você passa a noite. - A pergunta
parecia óbvia demais. Só percebera que dalguma forma tinha errado quando vi
Dico sorrindo.
- Meu rapaz, quando eu disse isso não me referia
ao dormir em frente a parede, falava no sentido de morar em frente mesmo.
- Você está querendo dizer que dorme num hotel 5
estrelas, é isso?
- C'est ça, mon amis.
- Hamm!? - Indaguei.
- Significa: é
isso meu amigo. Eu passo a maior parte das noites nos melhores hotéis da
cidade capital, como das melhores comidas só não aceito as bebidas de lá porque
gosto do tempero das bebidas da rua.
- Isso não faz sentido nenhum. Você nem sequer
chegaria no primeiro degrau das escadas vestido assim e tendo como acessório um
saco cheio de bugigangas.
- O problema do homem é botar toda sua vida na
aparência e viver por ela. Eu sou solicitado porque o meu francês, inglês e
espanhol é melhor e mais fluente do que muitos licenciados em tradução da praça
e porque sou mão-de-obra barata como vocês académicos preferem dizer, ou
explicando em outras palavras, eu faço alguns trabalhos de tradução para esses mulungos[8]
que vem ao país e se hospedam nos hotéis e não sabem falar tuga[9]
e em troca não peço nada além duma refeição e um quarto no hotel, ainda que
não seja dos melhores. Os gerentes dos hotéis vendo que eu era bom e
mão-de-obra barata acabaram também por adoptar os meus serviços não muitas
vezes como os mulungos, mas no final
todo mundo gosta de gastar menos e no meu caso eu nem cobro necessariamente e
ofereço melhores serviços que muitos licenciados que cobram uns bons trocados
por poucas horas de trabalho. Em suma, poucas vezes durmo na rua ou passo
necessidades.
- E te deixam entrar vestido assim? - Eu não
queria me convencer, mas eu acabava de me cruzar com um Tipo que acabava de me explicar o significado duma frase em francês,
que come e dorme nos melhores hotéis da cidade e eu com casa e família e
estudando, não sabia falar nenhuma língua a não ser a herdada portuguesa, nunca
tivera a oportunidade de entrar em um hotel e um morador de rua fazia isso todo
santo dia comendo do melhor e falando com gente importante. Nossa! Isso foi
muito humilhante.
- Eu sei que você é um idiota, mas faça o esforço
de não ser dessa vez. - Dico falava e parecia me conhecer desde criança. -
Claro que eu não vou ao hotel assim, eu tenho escrito, ou melhor sou o
autor de alguns discursos daqueles que você vê na TV nos pronunciamentos de
deputados e ministros e em troca eles me dão alguns fatos que usavam antes do
cargo ocupado e o carro em óptimas condições que também usavam antes do cargo,
mas que agora ficava na garagem às moscas por terem sido trocados pelos modelos
de última geração que os vossos impostos importam e alimentam as despesas do combustível
através duma "coisa" que chamam subsídio. Eles até tentam me pagar,
mas eu não recebo dinheiro e tão pouco tenho gana por riquezas. Faço apenas o
necessário para viver e continuar servindo de pão para aqueles que lucram com matérias
ligadas a moradores de rua da mesma forma como com as populações mal nutridas e
todo tipo de absurdos sociais desenhados pela sociedade. Por isso não ando nem
com os fatos que o deputado me dá para estar apresentável no hotel e nem com o
carro do ministro que pode atrair as pitas mais boas da capital, pois estou consciente
que se eu e meus companheiros deixássemos de ser vistos de má aparência, e em
contrapartida esbanjando riquezas, muitos perderiam seu pão. Falo de todos
aqueles que vivem vendendo a nossa desgraça em discursos provindos de
investigações superficiais. - Dico falava na voz calma que usou comigo desde o
primeiro momento. Não sei por quanto tempo estávamos parados e tampouco a
quanto tempo tínhamos chegado em frente ao portão principal do Jardim Botânico,
só sei que estávamos ali eu e um morador de rua de luxo contando uma versão
diferente dalgo que achava saber, ou melhor de muito que achava ser obvio
demais para questionar, lá estava eu com um ser humano que tinha a oportunidade
de ser rico e poderoso, mas que ao invés disso abdicou o poder e as riquezas. Porquê?
- Dico, eu gostava de conversar mais vezes consigo,
onde posso lhe encontrar?
- Por aí rapaz. Olha, quero mostrar-te algo. -
Dico revirou o saco que não lhe saía das costas e tirou de lá uma revista velha
donde abriu uma página que vinha escrito no topo com letras garrafais: LONDRES,
O CENTRO DO MUNDO apontando para a fotografia e seguidamente para o portão
monumental do Jardim.
- Nem vem, Dico essa foto é de Londres e aqui é
Maputo, portanto nem venha com a ideia de me convencer que essa foto é a do
portão monumental do Jardim Botânico.
- Olha, o que lês? - Perguntou o Tipo apontando
para 2 palavras.
- O Centro. - Respondi.
- Eu e tu estamos no centro rapaz, não importa
onde estejamos, estaremos sempre juntos.
- Mas porque você me contou tudo isso?
- Porque precisava de um tipo com aparência de
idiota para parecer menos idiota e contar toda verdade que contei, afinal, não
se pode legar a verdade a todos, não mesmo. - Sorriu.
Eu não sabia se acabava de me cruzar com uma
entidade divina ou quê, mas aquele tipo parecia ter me lido os pensamentos
desde o primeiro olhar que o lancei.
- Mas se você praticamente não vive na rua e vive
melhor que muita gente e se são muitos os moradores de rua que tem realidades
diferentes das que vemos nos mídias, então não deveria eu te chamar outra coisa
e não morador de rua?
Dico mais uma vez abriu o saco que eu já não
olhava com a primeira estranheza que tivera e tirou o que parecia um frasco de
perfume que borrifou sobre a minha camiseta. Era mesmo um morador de rua
luxuoso aquele.
- Vais para um encontro importante e isso dará um
toque especial. - disse ele, ignorando a minha questão.
- Dico, não deveria lhe chamar outra coisa ao invés
de morador de...
- Não. - Interrompeu. - O termo morador de rua
não é apenas um termo, vai além disso. É uma defesa que usamos para evitar
olhos gananciosos e as pessoas más da sociedade, pois na maioria das vezes todo
mundo tem medo de se aproximar de nós, pois nos julga criminosos e sem índole,
assim como os idosos são acusados de feitiçaria. A verdade é que cada grupo vulnerável
usa uma protecção, algumas delas são naturais e não muito eficazes como a velhice,
mas no nosso caso é uma protecção social, pois foi construída socialmente,
porém estas duas têm algo em comum: a sua existência independentemente da nossa
vontade, ou seja, nenhum grupo escapa a velhice e a construção social. - Disse
Dico afastando-se aos bocados e tomando seu rumo. Então gritei:
- Então quem são os moradores de rua?
Norek
Red
In: A
Chave da Gruta
as aparências enganam. grande texto
ResponderEliminarQuestões sociais pulsando nas veias, o escritor cumprindo o papel que também compete a literatura: de ser e dar voz a todos! Excelente texto Norek Red. Daúde Amade, excelente partilha!
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