O Pensageiro do Dia - Gaspar A. T. Pagarache

 

A vida é um profundo (...)

* * * * *

Estávamos sentados na varanda, pai e filho, ambos  na eternidade de mais uma conversa. O meu velho, Temporino,  já não desconcertava alegria. Havia entre os seus pensamentos um demasiado desgosto. Parecia vida após a morte. Cumpria os ditos que a sua falecida esposa me segredava.

Esse teu pai já não está lá muito bem. Vive pensando em lá no pretérito mais que perfeito!

E eu meninava-me naqueles íntimos segredos. Voz surda e muda. E ela continuava sem pausa como quem procurava um desabafo:

Estou a dizer-te, miúdo. O teu pai vai te dar problemas quando eu morrer.

Eu fingia não escutar aquelas predemoniações. Deu conta que o pensado foi cumprido. Tempos depois, Temporino tornou-se viúvo. Passou a ocupar-se de nenhuns afazeres. Passava os seus últimos instantes adivinhando os destinos alheios. Ficava à janela do quarto contemplando os passantes do dia. Nessa íntima contemplação da sala ouvia-se a sua voz. Ria e chorava depois de adivinhar uma vida:

      — Aquele aí vai ser esposo de nenhuma mulher. Vai-se casar sozinho ou com a solidão. — sussurrava.

Não me era estranho. A mãe adiantara-me este sucedido. Eu só tinha que controlar os acontecimentos...

      Certa foi uma vez e uma vez foi certa. Temporino acordou decidido. Despensou a sua janela por uma sentadela na varanda. Naquela manhã, fingia alegria no lugar de tristeza. A manhã parecia mais incerta que certa. Temporino foi arrastando os seus pés até à varanda. Arrastar é a única desabilidade que lhe restou. Temporino está mais antigo que velho. Nesse arrastar dos pés, levava às mãos uma garrafa de uísque. Passou do meu quarto e gritou:

Levanta-te daí e vem ate à varanda. Tu precisas saber de algumas coisas...

Levantei-me às pressas. Esfreguei os olhos suavemente. Caminhei. Quando cheguei, ele disparou:

Sabes o que ando a fazer lá dentro?

— Sim, pai. Anda a falar sozinho.

Deu um trago e retorquiu, nervoso.

— Nunca mais. Nunca mais digas isso. Eu ando a cumprir o destino dos que não sonham.

— O pai já sonha?

— Não, miúdo! Não me entendeste. Ando a sonhar gentes quaisquer. Esses que não têm ideia sobre a vida.

— Você tem, pai?

O velho recostou-se naquela cadeira. Deu um trago do seu uísque e continuou:

— Sempre tive. Sou um velho que nunca chegou a envelhecer. E sei que a vida é um profundo ensaio. Basta não saber ensaiar para ela deixar de ser vivida.

Fingi que entendia aquelas palavras e continuei de ouvidos.

    — Vou-te ensinar uma coisa, miúdo. Estás a ver aquele passante ali?

    — Sim, vejo.

    — É uma pena. O ensaio dele terminará amanhã de manhã.

Desconfiei que fosse o uísque que lhe tinha ocupado os miolos. Dois, três, quatro, cinco tragos já se tinham ido ao organismo. Um trago é só um ensaio para a morte. Dois ou mais é a morte ensinando-nos a vida, alertava a minha mãe ao seu marido.

— Tens que aprender a desaprender, filho. — Sentenciou...

O dia foi, em legítimos fingimentos, uma alegria. A chuva foi aos poucos pedindo licença. A varanda pingarelava. Corremos, pai e filho, para mais para dentro. Ficamos ambos vítimas do sono. A nossa casa estava mais para sono que sonhos. No dia seguinte, sucedeu-se o acontecido. Temporino faleceu. O velho ensaiou tanto a vida alheia que se esqueceu de ensaiar a sua própria existência...

 

                                   Créditos da imagem: https://br.depositphotos.com/172871832/stock-photo-thoughtful-mature-man-sitting-in.html


Gaspar A. T. Pagarache, 2023

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