Amor
é família.
O Trágico e o Amor em Terapia Familiar de Gerson A. S. Pagarache
Por Gerson Monjane
É
com estima que estendemos nossas saudações aos leitores. É nosso compromisso acompanhar o pulsar da
literatura de forma sistemática, como mandam as escolas das revistas
Itinerário, Tempo, entre outras, que consagraram o bem pensar sobre a
literatura moçambicana. A revista é o espaço para desfilar as nossas leituras
por excelência, e é com Terapia Familiar,
obra de estreia de Pagarache, que tencionamos manter um diálogo, por forma a compreendermos
como o amor se explica em eventos trágicos.
Espaços
em revistas são restritos, leitores cada vez menos visados. Objectivamente,
observa-se, no conjunto de desaseis contos, que, conforme a proposta literária
de Pagarache, cada voz de um personagem dá-nos a conhecer, a partir da sua
focalização, a sua versão da diegese: Tole casa-se com Imaculada enquanto
jovem, recém-chegado da Alemanha, tinha dinheiro. Teve três filhos frutos do
casamento (Ernesto, Moniquinha e Thambo). Com o passar do tempo e as
dificuldades da vida, torna-se alcoólatra e amargo, o que gera, nos membros da
família, tensão. Consequentemente, Ernesto refugia-se na casa de um amigo,
Manussés, onde se apaixona pela irmã deste, a Maira; Moniquinha desenvolve
sentimentos de ira e raiva pelo pai, guiada pelos tais sentimentos, tenta tirar
a vida do pai por duas vezes; Imaculada, a esposa, procura emprego, cede as
investidas de conquista do jovem Carlos, este, insatisfeito pela rejeição da Imaculada,
informa Tole no Bar, que dormiu com
a esposa, facto que gerou o conflito.
A
terapia instaura um movimento de sentimentos de saída do caos à paz, à purificação
após a intriga. Não tratamos, nos textos de Pagarache, taxativamente, do que Aristóteles
(2003/ s/d:109) designou de imitação de acções humanas superiores à média
humana, que suscitam o terror e a piedade, nos moldes clássicos (tendo em conta
os meios, os objectos e os fins: Medeia
de Eurípedes e Édipo Rei de Sófocles
são demonstrativos) Até, pois, que na obra temos seres médios, então. Mas a
tragedia de que se trata é aquela em que os personagens, ao longo do seu
percurso, terminam em um acontecimento sinistro, que gera sentimento de
repulsa.
Relativamente ao amor, Figueiredo (1935:40),
citado pelo Dicionário de Literatura (1997), explica que, desde os cancioneiros
Medievais, as cantigas de amigo, diversos caminhos foram seguidos pelos poetas,
relativamente a matizes.
Ao
ler a obra Terapia Familiar, a memória
e a nostalgia são os recursos que o autor usa para nos fazer mergulhar na
diegese e quase somos persuadidos pelo personagem Tole à razão.
As
razões que o personagem Tole levanta ao dar-nos a conhecer a sua versão,
concorrem para suscitar eventos trágicos, outros personagens agem na relação de causa e efeito, das acções principais
de Tole; o amor, na presente leitura, é essencial, pois, além de outros matizes
na obra representadas, é o argumento para o efeito trágico, a face oculta do
amor/ não saber amar. Compreender as versões de cada personagem instaura no
leitor um movimento de sentimentos de saída do caos à paz, à terapia familiar.
Dos problemas existenciais
Tole
consome bebida e drogas para fugir das lembranças dos momentos mais altos da sua
vida, que lhe doem, pois a sua nova realidade é cruel, de um capitalismo macabro,
que deixa Tole apenas com vontade «- […] estou a negociar um grande dinheiro,
vou mudar tudo!» (P.40), porque o desejo não se materializa, entre o desejo e a
irrealização, a frustração e amargura, o amor pela família gera covardia,
evasão que demarca um egocentrismo «Beber é esse egocentrismo de querer ser
feliz sozinho» (P.121); ralha e agride fisicamente a família, por orgulho, não
quer ver a mulher a trabalhar, não assume a culpa pelo comportamento
inconveniente, atribui à irmã da esposa, que passou a viver com a família, o
motivo de todos estarem contra ele.
O
comportamento de Tole desencadeia três momentos de reacções principais, o
primeiro, não menos importante, Ernesto foge de casa, Moniquinha desenvolve a
ira e a vingança, Imaculada, raivosa, também foge, e hospeda-se em casa de
Carlos, dando jus aos boatos e acusações do marido «anda a foder com vizinho
você […] Ela que…que ti ensina putaria» (P.50); O segundo momento, Tole é
tragicamente envenenado pela própria filha «quanto mais o pai se alimentava, eu
preferia sentir a ira recompensada, a vingança realizada. Coma tudo, maldito!»;
e o terceiro momento, a família de Tole, em reacção à sua agressão, novamente,
pela mão da própria filha, é-lhe enterrado uma tesoura no pescoço.
Suluçando,
Tole justifica o seu comportamento, «-Tudo…tudo o que fiz foi…foi amar-vos de
forma errada» (P.126). É aqui onde a afirmação do personagem pai[1]
encontra encaixe, «-o amor tem o seu lado bom, mas é raro num mundo maldoso.
Muitas vezes, o amor age com violência, agressão, e corrói o nosso interior»,
porque segundo este «-o amor dói. E a dor pode destruir. Provavelmente o mundo
esteja sendo destruído pelo amor que tanto proclamamos» (P. 88-89). Como se lê,
o amor de Tole pela família concorre para desenhar os dois momentos de reacções
trágicas, de violência, a face oculta cuja compreensão permite purificar as
emoções, é uma terapia ao leitor.
Outros
matizes do amor: a necessidade muito bem notada por Cândido[2]
(P.82-83), o da fantasia, que se explana na presença imprescindível do
sexo oposto para copular, se não é no físico, a mente faz a questão de trazer o
outro. Nota-se um sensualismo secreto de Ernesto pela vizinha, o absurdo de apreciar
matinalmente a vizinha, e trazê-la na fantasia, em pensamentos, e com ela copular,
a punheta «vejo a rapariga vizinha
varrendo o quintal. Ela traz um vestido de riscas […] de costas para mim, a
rapariga inclina-se novamente colocando suas costas em posição horizontal.
Intensifico os meus movimentos e disparo pequenas balas brancas em múltiplas
direcções» (P.18). Velho tema. Mas com a designação e maneira trazida em
Pagarache, actualíssima. A vizinha é um hábito que até saudade cria, como é
normal aquando de uma relação normal entre as pessoas, no universo empírico «sem
qualquer frincha para contemplar a minha vizinha, o bambolear de suas ancas, o
reclinar de suas costas quando passava a sua vassoura matinal» (P.111).
O
secretismo galanteador, este traço denota-se quando Ernesto escreve um poema
confessando seus sentimentos secretos pela irmã do amigo Manussés, Maira, e
esconde a carta, vindo a declarar seu amor declamando o poema «À Maira… Se eu
fosse um pintor» (P.119), depois de confessar quando confrontado por ela. «Eu
me abalo quando andas…[…]-Eu tremo quando falas,[…] -Eu arruíno quando sorris.
[…] – Quando declamas o mundo pára de girar». (P. 118). Por outro lado, é no
caso da Imaculada e Carlos, que se denota a impossibilidade ou inreciprocidade
do amor « […] tenho sentimentos. Eu amo-te. – Acontece que eu não!» (P.95), de
um amor que gera insatisfação, Carlos informa Tole o caso que supostamente
tivera com Imaculada, a esposa, ferindo-lhe a masculinidade e dando relevância
a designação inconcebível, que faz questão de expressar não ser, tolo, mas sim,
Tole.
Não
é sobre o amor apenas que se lê na obra, é notável o saber linguístico nas
respostas dos diálogos entre personagens, «Foi o único som que se viu escapar do
seu aparelho fonador» (P.30); «-como resposta, cruzei o corpo e a ponta da língua aos alvéolos para, de seguida, soltar um som desdenhoso» (P.49). (sublinhados
nossos). A consciência sobre a designação de que as palavras são representações
de conjunto de sons, onde estes são produzidos, que órgão envolver na produção
de um som, não é o conhecimento acessível a quem desconhece a Fonética.
A
intercalação das histórias não permite uma narração linear crescente ou
decrescente, o que desenha uma capacidade de encaixe do autor, de cada história,
cada versão exposta pela personagem, na diegese principal de Tole e Imaculada,
em que as personagens se constroem a partir das acções que praticam, pelo
pensamento que expressam, pelas conversas, pelos fluxos de consciência, entre
outros elementos, a preferência pelos substantivos comuns, nos títulos dos
textos.
Portanto,
percorrer as cento e vinte e seis páginas de Pagarache é passar por um processo
terapêutico em silêncio, afinal, cada um de nós faz para de uma família; é
reavaliar a forma como temos amado, dado-lhe com a incapacidade de recuperar o
tempo perdido; é reafirmar a noção da lei n.° 22/2019, de 11 de Dezembro[3], é
buscar erradicar o trágico nas famílias. Esta não é uma escrita imatura e
pretensiosa. Aliás, sobre esta particularidade, no fim da novela, o próprio autor,
indeciso, questiona se continua? E, caro leitor, tenha a chance de fazer parte
da decisão, lendo a Terapaia Familiar,
para responder à questão.