O íntimo de um ser solar - III

 

O íntimo de um ser solar - III
João Timane

Enfeito os meus dias com o orvalho da manhã. Hoje a cor da primavera veio me visitar. Eu começando árvore. Quero ir até passarinho. Minha alma acaricia os pensamentos de todas as flores azuis do mundo que a minha sensibilidade transforma em poesia. Da janela da minha alma nasce um pássaro azul. Meu coração sangra um pôr-do-sol sobre o mar. O som da poesia é o meu templo. Todas as palavras do mundo, a minha religião. Beijo a luz pura do dia e o azul do céu e do mar emerge no meu peito. Todos os rios do mundo correm para o mar do meu coração. O mar dentro de mim está cheio de vida e luz. Meu íntimo é um porto seguro. Tenho África no coração. Levo-a comigo onde quer que eu vá. Tenho o dom de cultivar os campos. Tenho o dom da palavra. Tenho o dom de perdoar e amar. Sou grato a Deus pelo dom da vida. Escrevo em rigor de terra nua. Escrevo poesia de beleza e sabedoria africana para entregar abraços, amor e esperança aos meus irmãos moçambicanos, africanos e de todo o mundo. Escrever poesia é o meu jeito de amar a humanidade. Sou da raça do vento redemoinho.

Da minha sensibilidade surge o poeta. Do meu olhar surgiu o explorador da natureza. Das minhas reflexões sobre a vida e o mundo surge o filósofo. Meus olhos se espalham no orvalho fresco da manhã. A janela do meu quarto é a melhor e a maior vista para o mundo. Sou um poeta moçambicano universal. Canto minha aldeia e encanto o mundo. Meu poema me procura na praia escondida no ritmo da vida. Há um poema de luz na minha frente. Todas as tardes, ao folhear o livro da minha vida, encontro fé e esperança em todas as páginas. Quando o dia se veste de luzes dos raios solares. Marco encontros com a minha amada, num lugar sem tempo, no espaço onde corre o mar. Hoje pintei o meu dia com as cores das aves do paraíso. Apesar da violência permanente, saio andando pelas ruas do mundo. Sem medos, nem insegurança. Um sopro de vida vindo da África atinge o meu ego. A poesia dançante das formigas da minha aldeia dá qualidade aos meus dias. Acredito ter algo em comum com os devaneios doces e profundos cravados na pele das crianças da minha terra. Há uma gaivota ao pé de mim. Vislumbro os mundos do vento ondulando pela tarde. Minha única vocação é estar sozinho.

Todas as manhãs me apaixono pelo nascer do sol. Esse fenómeno ilumina a minha vida. A luz do sol vai gotejando em mim, e lavra o solo da minha alma. O rio da vida e o rio de Deus passam ao lado do meu corpo e emprestam o seu perfume à minha pele. Devagarzinho, abro os braços e abraço os ritos da minha existência. Tenho os bolsos cheios de fé, amor, paz, e liberdade. Danço ao redor da natureza visível e invisível, canto e danço nos vales e ao mesmo tempo nas montanhas. Do meu poema vê-se África. Falo e rezo na língua dos mortos, estou em harmonia com a energia do solo africano onde foram enterrados os meus antepassados. Minha alma viaja pelas savanas do meu país. Escrevo um peixe dentro da água. Respiro fundo uma borboleta no casulo e encontro o meu destino. Tomo em minhas mãos, a alma vivente da minha mãe terra. Um núcleo sagrado se forma. Entre a minha mãe terra, eu e os meus irmãos. Me encanto ao contemplar, a riqueza cultural, humana, espiritual estampada na pele e nos olhos de cada irmão moçambicano e africano que me rodeia. Para sempre quero pertencer a este caldeirão cultural chamado África. Para sempre quero pertencer a este pedaço de mundo, com cheiro de mim. Meu corpo está cheirando ao perfume das nascentes dos rios, das cataratas, e cascatas. Deus escolheu o meu poema como esconderijo da vitalidade e das sementes da sabedoria do meu povo. Hoje o dia pede sabedoria. Hoje o dia pede poesia.

As formas do mar florescem em mim. Tenho feições de aves, rãs, e árvores. Eu gostaria de escrever um arco-íris usando o fogo e o vento. Tenho diante de mim uma nuvem grávida de chuva e uma semente solta dentro da barriga da terra. Faço um poema para as minhas plantas, e para os meus gatos. E nos domingos de chuva, sigo os meus sonhos na varanda do horizonte da vida. Escrevo o meu destino na poesia das manhãs frias. Amo ler crónicas de Mia Couto. Tenho vários orgasmos mentais na rua do meu pensamento. Tenho tanta sede de um mundo puro. Tenho muita sede de uma humanidade com bons hábitos e que respeite o sagrado. Por isso, sinto-me no direito de escrever pela reconstrução do mundo. Os meus poemas não estão nos meus livros, estão em mim.


Por Morgado Mbalate
Fernando Absalão Chaúque

Professor, escritor, poeta e blogueiro. Licenciado em Ensino da Lingua Inglesa. Autor de ''Âncora no ventre do tempo'' (2019) e co-autor de ''Barca Oblonga'' (2022).

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