A vendedeira invisível - Gerson A. S. Pagarache

Os negócios da Dona Madalena andavam de mal a pior. Nas últimas semanas, ela passava dia e noite observando as suas colegas, também vendedeiras ao seu lado, lucrando com o mesmo negócio. De dia, Dona Madalena recebia moscas como clientes. De noite, mosquitos.

Todas elas vendiam ‘‘calamidades’’ nas bermas do informal mercado de Goto. Suas bancas eram um saco branco, ora preto, estendido pelos passeios, acomodando planaltos de calções, ora calças, ora peúgas, ora camisas, ora saias, ora calcinhas, ora biquínis, ora fronhas, ora…ora.

Os negócios da Dona Madalena andavam de mal a pior. A cada cinco fardos de vestes que as colegas vendiam, Dona Madalena vendia apenas um. Ela era uma ilha de intempérie e escassez, rodeada de um mar de fartura. Era-lhe impossível não experimentar o ciúme, a inveja, a humilhação.

De noite, em casa, a filha preparou o jantar e sentaram-se à mesa:

– Jantar à luz de velas, filha! É um jantar romântico?

Yara não resistiu e soltou uma gargalhada.

– Não, mãe. Acabou energia.

– Vamos recarregar amanha. Não é hora para chatear os vizinhos.

– Por mim, nunca os chateávamos, mas esses novos contadores assim nos obrigam.

– Desde que nos mudámos para cá, filha, tu não te afeiçoas a esta nova vizinhança.

– Tenho as minhas razões. Espero que a mãe cumpra o prometido.

– E cumprirei. Estaremos aqui por pouco tempo, até que concluamos a obra que o seu pai começou.

– Já se passam dois anos desde a morte dele, mãe, e até hoje não entendo o que a causou.

– É um mistério dos céus, minha filha. É um mistério dos céus.

– Hoje tive uma crise na faculdade. Mas foi passageira.

– Filha! – Dona Madalena exaltou-se.

– Eu ia ligar, mas depois passou.

Dona Madalena voltou a repreendê-la.

***

O negócio da Dona Madalena nem sempre esteve como actualmente se encontra. Ela já foi a mais bem-sucedida vendedeira de sua época, no começo de sua carreira, quando a concorrência eram dois dedos. Na época, Dona Madalena não queria arriscar no fracasso. Queria, de todo, que o seu negócio já decolasse do começo, por isso solicitou ajuda de uma amiga, que a apresentou a uma amiga, e esta, por sua vez, apresentou Dona Madalena a mais uma amiga.

Tudo estava pronto. Dona Madalena adquiriu o seu primeiro produto – um fardo de jacketas para vender naquele inverno – e esgotou na primeira semana. Um sucesso profissional. Infelizmente, Dona Madalena, mal inaugurava o seu negócio, perdia o seu marido, encontrado no quintal da casa, cagado e mijado, com o olho esquerdo virado para vizinhança do lado esquerdo, e o direito para a da direita. Desde esse dia, Yara atribuiu a feitiçaria aos vizinhos e passou a odiá-los. Mas, Madalena não fez caso, embora não soubesse, também, o que terá causado a insólita morte do marido. São segredos dos céus.

***

Os negócios da Dona Madalena andavam de mal a pior. Nada melhorava. A filha pressionava a saída daquela casa. O Senhorio pressionava a sua renda de três meses de atraso. A faculdade da Yara pressionava a renda das mensalidades. As farmácias pressionavam a compra dos remédios para o tratamento da condição da Yara. Era muita pressão. Mas havia solução. Dona Madalena conhecia a solução. Lembrava-se da amiga da amiga da amiga.

***

– Faz quanto tempo?

– Tempo suficiente. – Devolveu Madalena, com voz abafada e rosto suado.

– Como vão os negócios, amiga? – Quis saber a mulher, que trajava um saia longa, de seda, da cor de vinho, e um vestido de capulana. Atrás de si, havia um armário repleto de frascos de diversas cores: branco, verde, vermelho, azul, preto…

– A minha presença aqui não responde à tua pergunta, amiga? – Madalena soou sarcástica.

– Responde. – A mulher confirmou, com sorriso no canto da boca. – O que queres que eu faça por ti?

– O mesmo que da última vez.

– O mesmo que da última vez!...Trouxeste o sacrifício?

Do cesto que trazia, Dona Madalena extraiu uma galinha preta, cafreal.

***

O dia despedia-se quando Dona Madalena regressava à casa. No meio do caminho, recebeu uma chamada: Senhora Madalena, aqui fala a professora Lisa, Docente da sua filha. Não tenho boas notícias. A Senhora precisa vir imediatamente ao Hospital Central.

Dona Madalena perdeu a sua filha naquele dia. A autopsia acusou crise de asma. Apos as cerimonias fúnebres, Madalena voltou aos negócios. Determinada a cumprir a promessa que fizera a filha, mesmo estando ela, agora, morta.

Estendeu a sua banca no passeio. Abriu o seu fardo. As concorrentes já lá estavam. Mas, pouco e pouco, as pessoas amontoavam-se na banca da Dona Madalena. Outras, mesmo a sete bancas de distância da Madalena, acorriam até ela como se tivessem sido chamadas para receber algum brinde. O sucesso estava recuperado.

No meio daquele tumulto de compras que Dona Madalena geria, ela começava a ouvir uma voz, que convidava mais pessoas a aderirem às suas vestes. Ela ficou feliz. Alguém apareceu para a ajudar. Devia recompensar aquela pessoa, talvez contratá-la. Dona Madalena fez um esforçou para divisar, por entre a multidão, a pessoa cuja voz era tão retumbante quanto persuasiva. Quando viu, era a sua filha.

Dona Madalena tombou de costas.

Os negócios da Dona Madalena andaram de mal a pior.


Texto: Gerson A. S. Pagarache

                                           (Créditos da imagem: https://www.rfi.fr/pt/mo%C3%A7ambique/20200803-mo%C3%A7ambique)



1 Comentários

  1. Bom dia, como representante em funções de um importante site na nossa língua mãe,(lusopoemas.net) bastante difundido no Brasil e em Portugal, peço que nos divulguem na comunidade de escritores Moçambicanos com vista a nos tornarmos ainda mais globais como o nosso idioma merece, temos uma grande dificuldade em penetrar nos países lusófonos deste tão grande continente, por isso peço a vossa ajuda, muito obrigado

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