A Ética em "O Abutre Vaidoso" de Kátia Casimiro


A ÉTICA EM “O ABUTRE VAIDOSO” DE KÁTIA CASIMIRO, por Matos Matosse 1

A Ética em "O Abutre Vaidoso" de Kátia Casimiro
O abutre Vaidoso

“O amor é meio de o homem se realizar como pessoa”. 

Karl Max (1818-1883), filósofo, sociólogo, historiador e revolucionário socialista.


A autora2 deste livro, O Abutre vaidoso, – Editorial Novembro, 2019, com ilustrações de Celsa Sánchez e com riquíssimo exórdio escrito por Adela Figueroa Panisse – conta-nos uma estória que acontece no Sul de África, espaço geográfico, geral, mas, especificamente, num deserto, cujas temperaturas fervilham-no, chegando os termómetros a atingir os 40ºC. 

Neste livro, Kátia Casimiro descreve o cenário do ermo, salientando os elementos típicos que o caracterizam. Fá-lo, recorrendo à antítese e, simultaneamente, à sinestesia, figura de estilo que relaciona planos sensoriais díspares: árida e seca vs linda. Montanhas altas, penhascos enormes, e, como se deduz da frase seguinte: «…que ferem a visão com tamanha beleza.», pág. 9, – à hipérbole

Os cactos tinham lindas flores, contrastando com a aridez que murchava o deserto; era nas flores onde as aves conseguiam a água para espantar a sede, porém, os abutres mais novos não podiam ter sequer essa gotinha de água, por causa dos picos dos cactos que constituíam armadilhas. Exigia alguma astúcia para se conseguir água. A única ave que a tinha era o Abutre velho. 

Os picos eram oponentes às aves que, por ali, voavam, sem esta estratégia de sobrevivência.  

Esta estória tem como protagonista o Abutre velho, solitário. Um abutre que, nos seus "planos", desejava casar. [Mais adiante, iremos saber a razão por que o Abutre não conseguia parceira com quem pudesse se casar.] 

Contrariamente, os outros abutres viviam, em grupos harmoniosos, alegres, enfim, era um ambiente de amizade, de amor e de fraternidade. Devido ao comportamento abominável que o Abutre velho manifestava a outros abutres; estes [os outros abutres] não gostavam dele, repudiavam-no e zombavam-no ao vê-lo: 

Os outros abutres, que se reuniam todos, à mesma hora, ao lado do maior cato da região, quando avistam o abutre vaidoso, já de longe, diziam:

–  Lá vem o sabe tudo. 

– Será que algum dia saberá que é o animal mais feio da Terra? 

Todos se riem. (pág. 13) [sic]

  • Kátia traz-nos a figura de um abutre; é necessário que se compreenda que esta figura é, apenas, uma metáfora. Poderia ter trazido – a autora, se assim a tivesse desejado – uma outra figura de um animal qualquer. 

As estórias similares, às que Kátia Casimiro no-las sugere, chamam-se fábulas = narrativas breves, simples, pragmáticas e as personagens não têm grande nível de complexidade.  As fábulas têm como finalidade, a formação ética, doutrinária ou satírica, educação, moralização. 

Alguns nomes que teriam “cultivado” este tipo de narração: Esopo, Jean de La Fontaine, irmãos Grimm (Jacob e Wilhelm), de outros. 

A estória do Abutre vaidoso não passará de uma sátira.  É uma crítica severa  – diga-se – a comportamentos desviantes praticados por alguns homens. Kátia Casimiro levanta a questão de ética, da dignidade da pessoa humana. Há, na verdade, homens que têm atitudes iguais às praticadas pela personagem principal desta estória. Cheios de orgulho, desrespeito pelo outro, etc. Deixe-me explicar melhor, a escritora, partindo de comportamentos humanos, vai criando uma estória em que estes comportamentos são atribuídos a figuras de animais. Temos animais (personagens) que aparecem a falar e a praticar actos humanos. Daí, a figura de estilo que predomina [nas fábulas] seja a personificação. 

Ora, a protagonista desta estória isolava-se dos outros pássaros por os considerar feios. Deselegantes.

Não existe pássaro mais belo e mais formoso do que eu! No dia em que eu morrer, não sei o que será da humanidade! Eu sou o abutre mais belo que pode haver no mundo, mais belo do que eu, nunca se viu. Habito um reino onde eu sou o rei, e mando em tudo, sou fenomenal. (pág. 11) 

A passagem textual, mando em tudo – no excerto, acima – revela, clara e, inequivocamente, a atitude autoritária; despótica; uma atitude de total injustiça; configura-se-me correcto, também, dizer-se aprisionado. Sim, os outros pássaros sentiam-se aprisionados, psicologicamente. Desprezados. Humilhados. O Abutre criava, permanentemente, este ambiente de abjecção. Não um ambiente de liberdade. De paz. 

E, no seguinte trecho textual, em que o nosso protagonista adverte o outro abutre para que este aprende a vida, estranhamente, o mesmo abutre, o protagonista da estória, toma uma atitude diferente perante o companheiro; agora, pelo menos neste trecho, nota-se um tratamento carinhoso, gentil: 

…Não sabes nada, menino, tens muito que aprender. Aprenda, pois eu não duro para sempre…, mas devia durar… (pág. 13) [o negrito é meu.]

 Há, neste segmento textual, a expressão da metafísica. Uma ideia de transcendência. Uma ideia de que a vida acaba. A vida termina. Enfim, a ideia da morte. O Abutre vaidoso, apesar de tudo o que ele é, tem a noção de que, neste espaço, não vivemos para sempre. Não somos eternos viventes. Ainda que esta atitude do Abutre velho seja o avesso das suas acções.  

[Então, de que vale a tamanha maldade, se, no fim, todos seremos consumidos pela areia? Por que não se cultivar o amor, a irmandade, a fraternidade, a boa convivência, se tudo acaba? Por que não levamos a vida no sentido mais positivo? Belo? Desprendermos de coisas supérfluas?] 

E, em outra passagem, a autora refere-se ao número 7 ‒ [intencionalmente ou não] ‒ quando fala do período que a tempestade teria durado: “Uma tempestade a sério. Choveu imenso… Passaram sete dias...” 

Nesta passagem, a temática é a de bíblia. De perfeição. O que isto significa, no contexto estórico-narrativo que Kátia Casimiro nos apresenta? – [Como veremos, mais adiante, depois desta abstração bíblica que se segue]. 

O número sete (7), na concepção bíblica, transmite a ideia de totalidade, interação, conclusão, perfeição e consumação. É, também, o número máximo de Deus; o número limite de Deus nos Seus planos para com o Homem

Há várias passagens das Escrituras Sagradas que no-las elucidam isto, por exemplo: 

Abraão entregou 7 cordeiras a Abimeleque como testemunho. E disse: tomarás estas cordeiras de minha mão, para que sejam em testemunho que eu cavei este poço. (Gn. 21.30)]

          Portanto, Kátia Casimiro, ao se referir à duração da tempestade, por 7 dias e, tomando, consideravelmente, aquilo que sucedeu – [e o que sucedeu foi isto]:

Felizmente tinham-se alimentado o suficiente para suportarem esse período. Todos os abutres aguentaram e permaneceram vivos, apesar do frio que, por vezes, fazia e ao qual não estavam habituados. (pág. 14)] 

– posso, claramente, dizer que a autora pretende transmitir-nos a ideia de preparação [= a educação], prevenção. Poderá ser, igualmente, a de virtudes


A Águia real educada vs o Abutre vaidoso: uma salvação e libertação dos abutres

A aparição da Águia, no reino dos abutres, pode ser interpretada como salvação. Como alívio e libertação dos abutres; como fim de abusos. Fim de humilhação. Se tomarmos em consideração que foi a Águia que despoletou toda a situação que culminou com a auto-descoberta do velho Abutre. O espelho funcionou como um instrumento imprescindível. [espelho, o mesmo que as poças de água criada pelas chuvas.]

Na verdade, há dias, registara-se uma tempestade naquela zona. Todos os animais foram obrigados a ficar escondidos para que não caíssem na desgraça. A chuva era muito forte. Trovejava. A chuva criou algumas poças de água por toda a zona do deserto. Foi nessas poças de água, em que o Abutre vaidoso foi desafiado pela Águia para ver a sua imagem reflectida, pois, o Abutre nunca se tinha visto ao espelho. Qual não foi o seu espanto? O Abutre não quis acreditar, quando viu a sua imagem reflectida nas águas. Descobre, finalmente, que era feio. Começou por desacreditar no que estava a ver. Mas, depois, nada mais que assumir a realidade que se lhe esbarava à sua frente.

Figuras de estilo predominantes

A ironia: «…apresento-vos o ser mais elegante e inteligente já visto neste deserto…», pág. 19; a hipérbole: «…que ferem a visão com tamanha beleza.», pág. 9; a metáfora, esta percorre todo o texto. É óbvio que a personificação é a que vai marcar a estilística da fábula. 

As ilustrações não deixam de fazer parte à estilística, aliás, estas jogam um papel importantíssimo para a compreensão da estória; para a motivação do leitor – de palmo-e-meio, a quem, geralmente, este tipo de literatura é dirigido. Um papel de complementaridade. 

Para fechar, Kátia Casimiro trabalha, com profundidade, as temáticas de metafísica, de bíblia, de ética. Tem, nas entrelinhas, a de amor. Não é comum se ter a abordagem de várias temáticas numa narrativa. Aliás, alguns escritores preferem abordar, apenas um tema, quando estiverem a trabalhar a narrativa. Contrariamente, na poesia, pode explorar-se vários temas, num só texto. Para tal, recorre-se ao cruzamento temático.  Trata-se de um jogo divertido. Com parataxes e a conjunção adversativa. 

Na narrativa, encontramos uma diversidade de palavras motivos; são estes motivos que nos facilitam determinar ou inferir a temática abordada no livro. Na poesia, estas palavras são chamadas isotopias

O livro de Kátia Casimiro tem uma linguagem simples. Embora apresente alguns parágrafos extensos, porém, isto não causa algum stress ao leitor porque – inteligentemente – a autora consegue desembaraçar-se disso, criando períodos curtos, com frases simples. Explora as interjeições, para que estas confiram alguma estética à frase e ao discurso entre as personagens. 

A escolha de temas como, por exemplo, o da ética, foi muito importante para se alcançar o propósito pelo qual a autora do Abutre vaidoso teria escrito o livro. A liberdade. A felicidade, o amor, já, neste contexto de relação com o outro e não o amor de união de duas pessoas que, neste livro, é abordado por entre linhas, quando a autora faz a alusão à solidão do Abutre velho.

A humildade e a simpatia são outras propostas comportamentais que a autora traz para que o homem saiba escutar e compreender o outro. Conclusivamente, é aqui onde reside a ética katiana. O outro, como centralidade, como reflexo, como identidade. 

A autora do livro, no fim do livro, dialoga com os leitores, colocando-lhes questões; esta atitude da autora é interessante, porque mostra que a ela está com o seu leitor, acompanha-o e orienta-o para compreensão da estória. 

Mas, afinal, qual foi o motivo da morte do Abutre vaidoso? [O leitor poderá tirar a ilação. Para tal, convido-o a fazer uma viagem por este livro bastante belo.]


1 Matos Matosse Professor, escritor e ensaísta literário

Kátia Casimiro

 2 Kátia Casimiro, pseudónimo de Ivanilde Kátia Rodrigues Casimiro, escritora da Guiné Bissau, nascida a 16 de Setembro de 1979, na cidade de Bissau.

Contadora de estórias da Guiné Bissau no 1° festival Infanto-juvenil de língua portuguesa – Travessia das Letras – Templo da Poesia – Oeiras – 2019.

Representante da Guiné Bissau no 1° e 2° Encontro Culturas Poéticas – Tertuliana – 2018 e 2019.

Autora dos poemas: “Corre Criança Corre!” e “Gosto” – XII e XIII encontro poético da LAHSM (Liga dos Amigos Hospital Santa Marta) – 2017 e 2018.

Autora do “Tributo a Tony Tcheka” – I Volume da obra: Tributo – Homenagem a Autores Marcantes da Literatura Universal, da Chiado Books, 2019.

Autora do Conto de Natal “O par de sapatinhos” na coletânea Natal em palavras da Chiado Books. 2018

Autora de micro-ficção, na coletânea “SMS”, Chiado Books, 2019. 

Autora de “Uma carta de amor”, na colectânea “3/4 de um amor” da Chiado Books, 2019.



3 Reflexão sobre a acção humana, para extrair dela o conjunto excelente de acções. É uma ciência (reflexão), que tem por objecto a moral e a lei (referencial da acção humana) e pretende aprimorar as “actividades realizadoras de si” desenvolvidas pelos indivíduos, pela busca do excelente. (DOS SANTOS, 1997: 14)


4 O homem não é apenas um ser de busca. É, também – deve ser – um ser da praxis. Isto significa que a sua busca, a sua reflexão, por mais crítica que seja, não lhe basta para se humanizar e libertar-se. É indispensável que tal reflexão se incarne numa acção transformadora. (FREIRE, 1978: 112)  


5 Capacidade de o ser humano comportar-se, moralmente, de maneira positiva, ou seja, a disposição de querer buscar o bem de si de maneira uniforme e estável. 


Maputo, Fevereiro 2023



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