A vida é um
profundo (...)
* * * * *
Estávamos
sentados na varanda, pai e filho, ambos
na eternidade de mais uma conversa. O meu velho, Temporino, já não desconcertava alegria. Havia entre os
seus pensamentos um demasiado desgosto. Parecia vida após a morte. Cumpria os
ditos que a sua falecida esposa me segredava.
— Esse teu pai já não está lá
muito bem. Vive pensando em lá no pretérito mais que perfeito!
E eu meninava-me naqueles íntimos segredos. Voz surda e muda. E ela
continuava sem pausa como quem procurava um desabafo:
— Estou a dizer-te, miúdo. O teu
pai vai te dar problemas quando eu morrer.
Eu fingia não
escutar aquelas predemoniações. Deu conta
que o pensado foi cumprido. Tempos depois, Temporino tornou-se viúvo. Passou a
ocupar-se de nenhuns afazeres. Passava os seus últimos instantes adivinhando os
destinos alheios. Ficava à janela do quarto contemplando os passantes do dia.
Nessa íntima contemplação da sala ouvia-se a sua voz. Ria e chorava depois de adivinhar
uma vida:
— Aquele aí vai ser esposo de nenhuma
mulher. Vai-se casar sozinho ou com a solidão. — sussurrava.
Não me era
estranho. A mãe adiantara-me este sucedido. Eu só tinha que controlar os
acontecimentos...
Certa foi uma vez e uma vez foi certa.
Temporino acordou decidido. Despensou a sua janela por uma sentadela na
varanda. Naquela manhã, fingia alegria no lugar de tristeza. A manhã parecia
mais incerta que certa. Temporino foi arrastando os seus pés até à varanda.
Arrastar é a única desabilidade que lhe restou. Temporino está mais antigo que
velho. Nesse arrastar dos pés, levava às mãos uma garrafa de uísque. Passou do
meu quarto e gritou:
— Levanta-te daí e vem ate à
varanda. Tu precisas saber de algumas coisas...
Levantei-me às pressas. Esfreguei os olhos suavemente.
Caminhei. Quando cheguei, ele disparou:
— Sabes o que ando a fazer lá dentro?
— Sim, pai. Anda a falar sozinho.
Deu um trago e retorquiu, nervoso.
— Nunca mais. Nunca mais digas isso. Eu ando a cumprir o destino dos que
não sonham.
— O pai já sonha?
— Não, miúdo! Não me entendeste. Ando a sonhar gentes quaisquer. Esses
que não têm ideia sobre a vida.
— Você tem, pai?
O velho recostou-se naquela cadeira. Deu um
trago do seu uísque e continuou:
— Sempre tive. Sou um velho que nunca chegou a envelhecer. E sei que a
vida é um profundo ensaio. Basta não saber ensaiar para ela deixar de ser
vivida.
Fingi que entendia aquelas palavras e continuei
de ouvidos.
— Vou-te ensinar uma coisa, miúdo. Estás a
ver aquele passante ali?
—
Sim, vejo.
— É
uma pena. O ensaio dele terminará amanhã de manhã.
Desconfiei que fosse o uísque que lhe tinha
ocupado os miolos. Dois, três, quatro, cinco tragos já se tinham ido ao
organismo. Um trago é só um ensaio para a
morte. Dois ou mais é a morte ensinando-nos a vida, alertava a minha mãe ao
seu marido.
— Tens que aprender a desaprender, filho. — Sentenciou...
O dia foi, em legítimos fingimentos, uma
alegria. A chuva foi aos poucos pedindo licença. A varanda pingarelava.
Corremos, pai e filho, para mais para dentro. Ficamos ambos vítimas do sono. A
nossa casa estava mais para sono que sonhos. No dia seguinte, sucedeu-se o
acontecido. Temporino faleceu. O velho ensaiou tanto a vida alheia que se
esqueceu de ensaiar a sua própria existência...
Gaspar A. T. Pagarache, 2023