CANSADO DESTE TEMPO: uma adolescente encubada por treze anos, que ousa entrar para a literatura moçambicana, na estirpe dos poetas

CANSADO DESTE TEMPO: uma adolescente encubada por treze anos, que ousa entrar para a literatura moçambicana, na estirpe dos poetas
Cansado deste tempo - capa do livro


Cansado deste Tempo é uma coletânea de poemas que reúne mais de 30 poemas escritos entre 2008 e 2021. Com as mais vastas estruturas poéticas, versos e estruturas livres, Rei do Gado explora temáticas como a eternidade, a solidão, a negritude, a pobreza absoluta, não se escusando de se debruçar, igualmente, sobre o amor, numa perspectiva mais astuta, típica de um Rei, neste caso, não exclusivamente do inofensivo gado, mas, sim, selvagem; não deixa escapulir, i.e., através do poema que dá título à coletânea, as peripécias deste tempo que, de forma atemporal, se vislumbra até aos dias que correm. 

Trata-se de uma coletânea de poemas bem conseguidos e ousadamente cobertos de uma linguagem que oscila entre a elaborada e despudorada, mas, a cada um, moçambicanamente trinchada. Traduz uma qualidade estético-literária que, sem sombra de dúvida, intima todo e qualquer leitor a contemplar o imaginário de um sujeito poético que, pelo cansaço do tempo que lhe contempla(ra), se descobriu no mundo dos escribas, como um mágico que nas palavras por si criadas, despoleta-se lhe uma embriagues a Craveirinha, Nogar, De Sousa (ou mesmo Calane?) Por que não Mia Couto?

Entre a rima perfeita – quanto à fonética – (aquela na qual há correspondência total dos sons a partir da última vogal tónica e repetição tanto de sons vocálicos como dos consonantais (= tal como se pode depreender no poema Mortalidade: "A mortalidade, / esta incrível realidade/ por muitos de nós temida/ tão por muito poucos querida/ é uma fatalidade infalível/ definitivamente indestrutível/ de todo o ser que tem vida." – Rei do Gado, (2022:8) [destaque nosso], a rima emparelhada (AABB) (=  tal como se pode vislumbrar em Maputo (2): "Centro de todas as atenções/ motivo de todas as emoções/ cobre-te uma inefável mistura racial/ que nos torna iguais ou diferentes/ cidade aponquentadamente poluída/ por gentes de todas as raças/ vindas desta e de outras praças/ deste teu e nosso Moçambique (...)" Rei do Gado, (2022:13) [destaque nosso] e rima cruzada (ABAB) (= tal como se pode inferir, i.e, na segunda estrofe do poema Solidão: "(...) Tiraste cores à minha vida/ ofereceste-me trevas e desespero./ Agora clamo pela tua partida/ Quero sobreviver a este inferno áspero." Rei do Gado (2022:9), aliado à antítese e trocadilho, patentes no poema que dá título à coletânea (Cansado deste Tempo, p.10); o sujeito poético procura exprimir o aborrecimento que sente relativamente a um determinado período (globalização, modernização), período esse em que a sua outrora gente – acrescente-se o termo outrora –  tem a mente embriagada pela absorção excessiva, crise de identidade e acção passiva e, acrescenta o sujeito poético, refugia-se na gente da sua nação, que exalta a sua moçambicanidade.


Cerimónia de apresentação do livro "Cansado deste tempo"

Como se pode depreender com as pequenas nuances que se avançaram nos parágrafos anteriores, com a coletânea CANSADO (= de aborrecido, gasto) DESTE (= pronome demonstrativo) TEMPO (= época determinada, estação, série ininterrupta de instantes), o autor pretende denunciar (i) a desigualdade (daí os títulos bem conseguidos como Pobreza Absoluta (p.16), Progresso Regressivo (p.24); (ii) a inutilidade que a vida nos reserva (ou o tempo? – daí os poemas Em Coma (p.29), O Inútil (p.30); denuncia, igualmente, (iii) a esperança, ancorada à nossa moçambicanidade, aos ritos e cerimónias (como mhambas), em poemas como Chuva Miúda (p.20) e Chuva Forasteira (p.21) e, só para vincar a moçambicanidade, serve-se, o autor, do manancial linguístico moçambicano para fazer dele ornato da sua produção poética, refiro-me a termos como kokwana e mhamba; khanimambus e mikulungwanas e, por que não de bacela, a própria Bacela?

Em jeito de bónus, Rei do Gado institui-nos um sujeito poético que ainda nos chama a reflectir sobre a resiliência dos moçambicanos como Samora Machel, Carlos Cardoso e Siba-Siba Macuácua que, para a firmarem, tiveram que hipotecar a vida, isso em Morte pela Verdade (p.11).

Luciano Corrales, no seu artigo intitulado "A intertextualidade e suas origens", defende que, falar de Intertexto e de Literatura Comparada exige perceber que, ao lermos um texto (A), estamos a ler um texto (B), e, este entrecruzamento de vozes percebidas ou levemente transparentes é algo que perpassa a escrita, e em especial a literatura, ao longo de todos os tempos (...)  

Não queremos, com esta citação, levar uma eternidade discorrendo sobre a Literatura Comparada, muito menos dar uma aula a respeito desta área, mas, demonstrar que Rei do Gado, não só por ser escritor, como também por ser professor e, aliás, se suspeita ter, pelas mãos de monstros do ensino de literatura aqui em Moçambique, passado, fez bom uso das técnicas e/ou ferramentas bebidas.

Serviu-se de um dos tipos de intertextualidade, neste caso, a citação, no poema Palavras (2) (p.18) – e da alusão, no poema Palavras (1) (p.17), por sinal o objecto do escritor, para: (i) traduzir (quem sabe!) a sua admiração por Mia Couto, mas, acima de tudo, uma das marcas dos escritos deste: a "brincriação" de e com as palavras, quando diz: "Inventemos palavras/ palavras novas, sempre novas/ inventemo-las bem inventadas/ como faz com sabedoria elitista/ o nosso consagrado romancista/ Khanimambu, Mia Couto!/ Khanimambo, Mia Couto!" (Rei do Gado, 2022:18). 

Fá-lo, igualmente, para traduzir a "semantificação" que caracteriza os escritos de Calane da Silva, quando diz: "Inventemos palavras/ não famintas de significado/ nem de fonemas nem morfemas. / Inventemo-las gordas de sentido/ que brilhe brilhantemente o sol/ para a "manifestação da palavra"/ Khanimambu, Calane da Silva! / Khanimambu, Calane da Silva!" (Rei do Gado, 2022:18); e o mesmo o faz para com Rui Knofli.

Portanto, estamos perante prova viva de que, entre a mestria, ousadia e audácia, Rei do Gado institui, na sua coletânea de poesias, sujeitos poéticos que, numa linguagem moçambicanamente trinchada e não só, denunciam as peripécias deste tempo que, de forma atemporal, se vislumbra até aos dias que correm e convida-nos não só a reflectir sobre as temáticas resumidas neste "textículo", mas, por que não igualmente sobre o negro?, muito exaltado por Craveirinha e De Sousa; por que não sobre o drama dos chapa-100? 

Por que não ainda sobre o conceito de espaço físico-social discutido por Carlos Reis e Ana Cristina Lopes e Víctor Manuel de Aguiar e Silva? E sobre amor na perspectiva de um poeta-mor encarnado que, para além da astúcia, mostra uma sensibilidade a este tão simplesmente mal necessário? Muito ainda se pode dizer sobre o livro, mas, para não deceparmos todas as vossas dúvidas sobre adquirir e não adquirir este tão belo e expressivo livro, deixamos agora a vosso critério. 

Ó, um conselho: como diz Cumbane, se o livro for bom, recomendem-no aos vossos amigos, se não for, aos vossos inimigos.

Bibliografia:

Activa:

DO GADO, Rei. (2022). Cansado deste Tempo. Maputo: Kuvaninga – Cartao d'Arte. 

Passiva:

https://www.google.com/search?q=antítese+significado&oq=antítese+&aqs=chrome.2.69i57j0l3.4919j0j9&client=ms-android-huawei-rev1&sourceid=chrome-mobile&ie=UTF-8, acessado em 18-11-2022, às 14:32. 


https://www.google.com/search?q=luciano+corrales+-+a+intertextualidade+e+suas+origens+pdf&oq=Luciano+Corrales+-+a+intertextualidade+e+suas+origens+&aqs=chrome.1.69i57j33.34478j0j9&client=ms-android-huawei-rev1&sourceid=chrome-mobile&ie=UTF-8, acessado em 18-11-2022, às 15:22.


https://www.google.com/search?q=trocadilho+significado&oq=troca&aqs=chrome.0.69i59j69i57j0l2.2895j1j9&client=ms-android-huawei-rev1&sourceid=chrome-mobile&ie=UTF-8, acessado em 18-11-2022, às 16:02.


Por Carlos da Graça Nhangumele

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