Preso no Elevador em Abu Dhabi

Preso no Elevador em Abu Dhabi
Albert Dalela


Estás neste momento sentado à mesa ao lado do prato que te acompanha. Tentas pensar noutras coisas, mas a tua cabeça continua mergulhada no banho que fizeste há pouco tempo. Estás num país alheio, tudo te é estranho, as pessoas dentro das burcas, as vias de acesso, os edifícios, as viaturas em circulação e por aí em diante. 

Gostarias de continuar a comer e parar de pensar tremendamente. Gostarias de mergulhar os olhos nos alimentos que te embelezam o prato, mas não, não consegues. Por isso, coitadinho que és, pensas no teu país e na distância que percorreste para chegar a este país asiático. Foram praticamente dez horas de voo, tendo tudo começado em Maputo. 

Num percurso de pouco mais de cinco horas voaste de Maputo para Adis Abeba, sentado ao lado de um camaronês que jogara futebol com Dominguez nos tempos de Desportivo de Maputo. O camaronês, carismático e ansioso em ver a família que não avista há mais de dez anos, não se quer mais dirigir a ti em inglês  porque descobriu que gaguejas razoavelmente a língua francesa. 

O camaronês conta-te coisas sobre o seu país e está ansioso em ver Samuel Eto'o a dirigir a selecção nacional no Mundial de Futebol em Qatar. Mas tu, por sinceridade, deixas claro que os teus olhos estão em Sadio Mané e na sua selecção senegalesa. Tudo bem, a conversa vai fluindo. O avião aterra num ambiente friorento em Adis. O camaronês toma um outro voo, enquanto tu segues para um outro que te leva directamente à Cidade de Dubai.


Desta vez, voas pouco mais de quatro horas. À entrada do avião, avistas um homem barbudo, de joelhos no tapete, num exercício de rezas e adorações à sua entidade metafísica. Ficas impressionado e nada mais. 

Acomodas-te na poltrona; ao teu lado, senta-se o teu companheiro de viagem e uma outra mulher cobertura de véus e burcas. 

Estou com gente totalmente diferente de mim, pensas de ti para ti, enquanto o avião flutua no ar. Nesse momento, vês que foste longe demais, vês-te muito longe de casa, sentes que te falta o ar do teu subúrbio, e a voz da tua Evergreen. 

Os passageiros dormitam, tu não consegues fechar o olho, ora escutas alguma música ora vês trechos de alguns filmes já vistos, mas integralmente vês Shawshank Redemption, e maravilhas-te novamente com Morgan Free Man e Tim Robbins.


No céu não há rede, não  há internet e nem sequer pássaros. O além e as nuvens causam-te fadiga. Tu gostarias de ver algumas árvores e alguns vendedores ambulantes, mas lá fora não há nada. 

À madrugada, aterras em Dubai, passas pelo check-in, chegas ao supermercado, maravilhas-te com o grosso das lojas e perguntas-te: será que todo o mundo é financeiramente estável neste país?, não, claro que não, sabes que não existe uma sociedade totalmente equilibrada. 

Pensavas que era tudo, mas não. A tua viagem continua. A viagem de Dubai para Abu Dabhi lembra-te a distância  existente entre Maputo e Xai-xai. É tudo deslumbrante, luzes, edifícios, arranha céus, pontes, comboios elétricos e tudo mais. A tua estúpida mente diz: as ocultas e ilegais dívidas também fizeram este percurso. 


Chegas ao local. É tudo diferente de Maputo, pensas tu.


Dia seguinte, caminhas para apreciar as infraestruturas e descobrir o que não existe no teu país.

Colocas-te em lugares que consideras interessantes e pedes ao teu companheiro para que te faça algumas fotos. 

Tentas ser um turista, observas as coisas com um olhar detalhista e dizes a ti mesmo: tenho que mostrar aos meus a beleza deste lugar. 


Sim, fazes as fotos e posta-las nas redes sociais. Algumas pessoas apreciam o teu passeio, outras pensam que te tornaste num burguês, por isso enchem-te de pedidos, querem que tragas presentes de lá, também porque acreditam que estás num país que vende as coisas a preço de banana. Enganam-se, entretanto, não sabem que estás paupérrimo, quebrado como costumas estar em Maputo. Ris-te às gargalhadas.  

Algumas mulheres, na cidade em que te encontras, olham-te com curiosidade e procuram descodificar a tua proveniência, respondes que és de Mozambique. Sobre o teu país nada sabem, e tu usas África do Sul como referência regional. Olham para ti e tu achas que pensam naquela história de os africanos possuírem uma pila gigante, torturante na cama. 

Mas não é todo o mundo que desconhece a existência do teu povo. Deparas-te com alguns mexicanos que te conhecem, usam Samora Machel como referência e falam vigorosamente sobre a revolução que te levara à independência em 75. Sabem que a tua língua oficial é a mesma que a de Cristo Ronaldo e Neimar Jr e perguntam-te: quem é a pessoa mais notória em Moçambique actualmente?, e tu respondes que é um jogador de futebol chamado Reinildo Mandava, e eles dizem que sim, conhecem-no, viram-no no Atlético de Madrid. 

Com os mexicanos, proprietários de uma revista denominada CuartoEscuro, discutes literatura, eles leram os mesmos livros que leste e, à tua semelhança, admiram John Steinbeck, John Fante, Bukowski, Paul Auster, Dom Delilo, Pablo Neruda e mais. Incrivelmente, um dos mexicanos mostra-te suas fotos ao lado de Gabriel Garcia Marquez. Ambos eram grandes amigos.

Quais são as referências literárias do teu país?, questionam-te, e tu respondes: temos Mia Couto, um escritor que ainda pode vencer o Nobel, há também João Paulo Borges Coelho, Ungulani, Paulina Chiziane, mas nas escolas é obrigatório conhecer Nós Matámos o Cão Tinhoso, e a obra de José Craveirinha. 

O mais interessante é que a tua conversa com estes mexicanos foi apenas em espanhol, porque eles não falam inglês e muito menos a língua portuguesa. A mesma coisa se passa com um togolês que só quer comunicar contigo em francês  por ter dificuldades imensas para se expressar em inglês. Ris-te e a ti mesmo perguntas: se eu não falasse todas estas línguas, como seriam as coisas?, uma parte de ti reage: sempre vale a pena aprender uma língua nova. 

Um tipo oriundo de Uzbequistão, um país que não faz parte do teu universo mental-geográfico, diz que foste enviado por Allan porque te assemelhas ao seu irmão John Big. Daí em diante, ele chama-te John Big e tu te rias à farta. 

Recorres sempre à literatura para  interagir com as pessoas. Por conta disso, mencionas a obra de Orhan Pamuk numa conversa  com um turco, e com um outro entras na Insustentável Leveza do Ser de Milan Kundera. Cada país, uma referência literária: entraste no Cairo Novo de Naguib Mahfouz com alguns egípcios,  e com alguns marroquinos debateste a obra de Tahar Ben Jolloune.

Chega de livros, mas tens certeza que a literatura e as línguas ligam-te ao mundo. Sem estes instrumentos jamais terias estado em conversa com estas pessoas, sem literatura não serias tu próprio. 

Um, dois, três dias... já sentes saudades imensas de casa. Queres voltar para casa, estás cansando, descobres que jamais conseguirias viver fora de Moçambique, descobres que és mais feliz com as tuas pessoas, mesmo quando tudo te falta, mesmo quando te ensardinham no chapa, mesmo quando o cobrador te manda à merda ou mesmo quando os buracos irritam-te ao longo de uma caminhada. 


Encaixas todos os teus pertences na pasta. Circunspecionas o quarto para que nada fique atrás, qualquer falha é fatal, ninguém  dos Emirados viria a Moçambique para te passar, por exemplo, uma cueca, uma escova de dentes ou um par de meias. 

Entras no confortável autocarro (embora penses no degradado Coaster com som de calhambeque), sais de Abu Dhabi em direcção ao aeroporto de Dubai. Ao longo do percurso, lês Detectives Selvagens de Bolaño. 

Ao fim destas linhas, descobres que te esqueceste de apontar alguma coisa sobre a visita que fizeste à Grande Mesquita.

Epah, o resto fica para outro momento, agora é só voar, já que não estive preso no elevador.


Por: Albert Dalela

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