"A arte tem a função de dar impulso à sensibilidade" - Otildo Justino Guido & Fernando Absalão Chaúque conversam com Britos Baptista sobre Possíveis Freios para Caos

"A arte tem a função de dar impulso à sensibilidade" - Otildo Justino Guido & Fernando Absalão Chaúque conversam com Britos Baptista sobre Possíveis Freios para Caos
Possíveis Freios para Caos - capa

Britos Baptista, moçambicano, nascido no distrito de Mocuba, na província da Zambézia, em 29 de Março de 1992. É professor. É tradutor e Interprete Ajuramentado de Francês/Português e Vice-versa. É licenciado pela UEM. É escritor e poeta. É membro da Associação dos Escritores da Zambézia (AEZA) e da Associação Moçambicana dos Jovens Francófonos (AMOJOF). É Coordenador do Clube do Livro de Quelimane. Actualmente, reside no distrito de Marromeu, província de Sofala, onde é docente de língua portuguesa e francesa, na Escola Secundária 25 de Setembro. Venceu diversos concursos literários e já teve os seus textos publicados em várias antologias. Possíveis Freios Para Caos (FUNDAC, 2021) é a sua obra de estreia e é em torno dela que Otildo Justino Guido (OJG) & Fernando Absalão Chaúque (FAC) conversam com Britos Baptista (BB), com o objectivo de descortinar o processo criativo que o gerou, as "temáticas" e os desdobramentos estéticos que no seu âmago alberga.



1. Abunda no livro a descrição da dor e das intempéries universais que afectam o Homem. Será a poesia um meio viável para enfrear o caos? (FAC)

A poesia dá-me oportunidade de olhar com o pensamento e ver com o coração e falar com as mãos. Ela tem a função de gerar sensações e reflexões sobre os problemas do nosso quotidiano. Vejo a poesia como antídoto para as dores do mundo que sangra e uma arma para combater o caos que vivemos. (BB)


2. Ao longo da leitura, verifica-se a personificação dos astros e eventos naturais em quase todos os textos. Há algum interesse em quebrar as fronteiras entre os inanimados e os animados? (OJG)


Sim. Interresso-me tanto em quebrar a barreira entre o físico e o imaginário. A geografia do verbo tem terra e céu e gira em torno de tudo que vejo e/ou não vejo. Às vezes, a semântica dos códigos parte do objecto para imagem. Às vezes, acontece o contrário. Isso não depende de mim, mas do que quero transmitir ao leitor. Gosto disso, dessa vertigem! As nuvens lá no céu podem ser a fumaça do fogo que tento apagar aqui na terra. (BB)

Britos Baptista


3. Cada poema deste livro é composto por apenas uma estrofe e não há muito recurso aos sinais de pontuação. A que se deve esta escolha estética? (FAC)


O tempo que nos rodeia transporta-nos do silêncio à oração e da oração à espera e vice-versa. Não sei quais pontos usar quando arde a casa do meu vizinho, por isso muitas vezes descarto-os, propositadamente, nesses Possiveis Freios Para Caos! No fogo ardem todos pontos, excepto o de interrogação. (BB)


4. Cada texto deste livro se foi construindo por signos, como se o poeta tivesse dentro de si o poema, e o leitor o conhecesse e por isso não precisasse o dizer por completo. Acha que a poesia é a língua primitiva e universal do Homem? (OJG)


Claro que sim! Antes de falarmos as línguas locais e estrangeiras, já falávamos poesia. Eu e o leitor dividimos o poema. (BB)



5. Lê-se na pág. 58: se este poema/ trespassasse pescoço/ gordo da fome/ deste meu país! Na sua concepção, qual é a função da arte? (FAC)


A arte tem a função de dar impulso à sensibilidade, à uma nova percepção do mundo, ao desenvolvimento do pensamento, à expressão dos sentimentos e a criatividade. Fala pelos demais homens. Ela ressignifica e valoriza os objectos a nossa volta e muda a forma de pensar o mundo e o seu futuro. A arte tem também a função de denunciar o mal e levantar barreiras contra ele. (BB)


6. Nota-se que é um poeta atento aos sinais do mundo, às metamorfoses da sociedade, tal se denuncia no texto IV “fogo/ acende boca/ da noite/ arde silêncio/ na redonda matriz/ do medo”, e igualmente no texto I “daqui se ouve gente/ chorando (…)/ (…)/ de vozes inocentes”, e vai correndo a ideia de fogo e guerra até o poema LII. Caro poeta, como olhas para a literatura que não intervém nas fórmulas quotidianas? (OJG e FAC)


Prefiro pensar que a poesia deve olhar para os paradigmas  sociais. É uma questão de humanismo. Sinto-me feliz quando escrevo o sorriso do mundo e triste quando se dobra no pranto a minha terra. Se a casa do teu próximo arde e o teu poema sorri, penso que estará ele longe de cumprir a sua função! Mas, respeito outras opiniões contrárias à minha! (BB)


7. Neste livro, há menção de lugares reais assim como fictícios e/ou mitológicos. De que modo as “geografias” contribuíram para a construção dos poemas que compõem esta obra? (FAC)


Os lugares sobem e descem nas escadas dos poemas. A terra e o céu misturam-se, na minha escrita. Busco nos locais onde escrevo o verbo que melhor possa transfigurar o mundo. Escrevi este livro, em três distritos e duas províncias do país: Marromeu, em Sofala, Morrumbala e Mocuba, na Zambézia. Há rios, montanhas, estradas, pontes e outros lugares que atravessam a espinha dorsal dos poemas. E, há dias que escrevi nos pés do sol e outros nos olhos da lua, outras ainda, nas costas das estrelas. Todos esses lugares deram vida aos Possíveis Freios Para Caos. (BB)


8. O poema XIII faz um presságio ao futuro, e o evidencia enrolado “na teia do medo”. Acha que o futuro é esdrúxulo? (OJG)

Os dias actuais são duros. A fome, a miséria, a corrupção, a guerra, o terrorismo, as mortes, o luto, o regionalismo, egoísmo, o racismo e outros negativos "ismos", as catástrofes naturais, a dor, a  tristeza e outros problemas sociais, políticos e económicos põem os meus poemas de joelhos e mãos levantadas. O que somos, hoje, como pessoas, como povo, como país, dita muito o que seremos, amanhã. Não vejo um mar de flores a atravessar o futuro próximo! (BB)


9. Ainda sobre o poema XIII, em que o poeta abre as portas de 2035 e nos traz, em vez de flores e praias azuis, o “medo”, será que a poesia sobreviverá diante desse medo colectivo? (FAC)

A poesia, sempre, sobreviverá a todas adversidades. Ela tem uma força transformadora, incrível. Acredito no seu poder de unir e humanizar as pessoas. Ela vencerá o medo.


10. Podemos considerar este livro uma “líquida oração à base de sal”? (OJG e FAC)

Sem dúvida nenhuma! (BB)


DOIS POEMAS DE BRITOS BAPTISTA EM "POSSÍVEIS FREIOS PARA CAOS"


VIII

E fora

é dentro

do frio

dentro

é fora

do frio

cacimba

nos olhos

de Domingo (s)

dormem pés 

do sol

no fundo

do rio


XL

Casa voa

nos olhos

do medo

atravessa

ruas estreitas

da água

anoitecida

lua

arde no fundo

do mar

barcos

escrevem rugas

de fogo.


In Possíveis Freios para Caos


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