Mukawuki, o jogo da sorte

 

Mukawuki, o jogo da sorte

Era um dia de calor escaldante. Daqueles que brasam qualquer objecto que se digne expor ao céu descoberto. Mukawuki pendurava no seu corpo um mugatlo (camisete interior) amarelo da Jordan e uns calções de igual marca, com os rodapés remendados por um tecido multicolor, ostentando mais uma afamada marca num só corpo: Nike. 

Segurava, na sua mão esquerda, um caderno compacto, de 192 páginas, daqueles de capa dura, qual a sua cabeça, como dizia a esposa quando começassem a discutir sobre os gastos que o seu marido "empreendia", tudo na esperança de, um dia, se ver milionário e tirar a família do labirinto no qual a vida lhe meteu desde o ano em que o povo moçambicano viu içada a bandeira no Estádio da Machava e proclamada a independência total e completa de Moçambique. Aliás, para Bongani, esposa de Mukawuki, a única independência que faltava ver era a do seu esposo em relação aos jogos da sorte que lhe sugavam desde então.

Na mão dextra, para além dos ensaios de combinação de números para a possível sorte de Mukawuki, que tinham sido registados desde 12 de Novembro de 1975, trazia os últimos boletins que lhe tinham sugado 10.000 Meticais da Velha Família. Na cabeça, trazia um boné roto que, apesar do seu estado de depreciação, para além de a queimar, deixava a calvície de Mukawuki evidente e imprimia uma pacata sombra frontal à sua testa. Não fosse esse préstimo, talvez não fosse usado. Nos pés, encaixava uma chinela da marca haivanas, cujo estado se equiparava à vida do seu proprietário: com um arame enfiado para que lhe permitisse deslocar-se em segurança.

Mukawuki é um Antigo Combatente e perdera um dos seus pés às custas da Unidade Nacional, unidade esta que lhe concedia uma pensão que, mesmo paupérrima, se Mukawuki não se deleitasse aos jogos da sorte, sustê-lo-ia, junto da família, por muito tempo.


Chega à loja de jogos da sorte. Tira o valor da aposta, nesse interlúdio, abre o caderno e dita os números que extrai de um quebra-cabeças somente por si conhecido. Antes de os entregar, recorda-se das palavras que a esposa lhe disparara: «Mukawuki, já chega, desde 1975 que jogas essa porcaria e nunca nos vieste com dinheiro a casa, estamos sempre a sofrer porque, da tua pensão, só conseguimos comprar arroz e óleo. Carne para nós é novidade. Outras despesas já não digo. Mukawuki, chega. Che-ga!»

Termina a recordação e, do fundo do balcão de atendimento, soa uma voz feminina, cuja proprietária denunciava propriedade. Pelos quadradinhos, dava para contemplar a sua beleza. Para além de clara, era meiga, de lábios besuntados de batom, capazes de deixar qualquer homem de queixo caído. As barracas e lojas do género são espertas. Colocam gente bela para melhor chamar a clientela. Uma estratégia de marketing infalível.

— Próximo. — Assevera a beldade! 

Mukawuki, sem demora, dita, desrefolhando do caderno os números. Em instantes, é-lhe entregue o bilhete, no mesmo momento em que entrega as suas pacatas moedas que lhe restavam desde que recebera a sua pensão.

Volta para casa todo confiante, pois aqueles números eram resultado de três horas e meia a fintar os falhanços de desde há décadas. Chega a casa, onde empurra o portão improvisado de chapas com a planta das muletas que usava e exige um copo de água, para esfriar os ânimos que lhe faziam companhia desde o mercado a casa. Enquanto rega o corpo por dentro, fecha os olhos e vê-se num mundo aquém do no qual se encontrava. Estava numa mansão de dois pisos. Tinha um carro e muitas lojas com "N" trabalhadores. Diga-se de passagem, o dinheiro da lotaria não é bom. Se não se torra em fracções de segundos, desgraça-te antes do nada. Aliás, não é para se investir em negócios, qual o da reforma nas minas.

Mukawuki pousa o copo metálico na mesinha de centro à sua frente e pede mais um copo de água. Entretanto, Bongani estava ausente, pois já conhece os delírios do seu esposo, desde há quase quarenta anos que jogava na lotaria. Pousou o jarro, igualmente metálico, enquanto Mukawuki viajava e voltou à cozinha.

— Bongani?!

— Mukawuki, que foi agora? Não pediste água?

— Sim, mas, como sais antes de eu terminar de a beber? Que raio de mulher és tu que não respeita a toma de um líquido precioso?

— Mas Mukawuki, eu servi-te, vi que estavas a viajar, não te queria interromper a viagem, deixei o jarro de água para que, quando precisasses de mais, te servisses.

— Ha... não é assim, tens de ficar aqui e acompanhar o processo até voltares com o copo e o jarro.

Na verdade, Bongani sabia que, terminada a toma da água, como de praxe, Mukawuki começaria por falar das coisas que faria caso ganhasse na loteria e... coisas que há mais de três décadas ouvia, porém, não se concretizavam. 

Mukawuki convida-lhe a sentar-se. Depois da pequena discussão pelo abandono à hora da toma da água, Bongani sentiu-se obrigada a anuir. Sentou-se ao seu lado e Mukawuki começa a sua interminável narrativa:

— Sabe, esposa, eu sei que tu não gostas que eu jogue. Há anos que não crês em mim. Mas, desta vez, sinto que todo o dinheiro que perdi desde há trinta e tal anos o vou recuperar. Com este dinheiro, Bongani, eu quero mudar a nossa vida. Eu serei um ricaço. Ninguém me vai parar. Terei lojas e lojas. Carros e carros. Empregados e empregados. Vou tirar-te da sarjeta.

Sem demora, os lábios de Mukawuki se cerram e os olhos são dirigidos ao pulso, onde se encontravam os dois ponteiros (um, das horas, outro, dos minutos) no mesmo número: 12. Mukawuki enxota a esposa feito ave e põe-se a escutar o Rádio, para acompanhar os resultados. Bongani, como de praxe, sai à cozinha e volta à sua actividade, mas, desta vez, acompanhada de uma canção da Igreja de que tanto gostava: maxaka ya mina/ a loku nifa mungani rileni... (família, caso eu morra, não chorem por mim...)

Porque se trata de uma canção da Igreja, Mukawuki não vê a necessidade de a mandar abrandar a voz, pois, pensou ele, «talvez estivesse a expulsar a sorte». Aumenta, por isso, o volume do rádio e, sem demora, estava lá uma voz meiga e cativante, capaz de apaixonar qualquer pessoa. Até um surdo. Anunciava os resultados do meio-dia. 

Mas, para a desgraça de Mukawuki, mais uma vez não ganhara. Aliás, ganhara: nada. Da cozinha improvisada, irrompe uma voz bem alta; era Bongani a lançar gargalhadas. Fosse na altura em que Mukawuki ainda tinha os dois pés e servia ao Exército, Bongani não se dignaria a lançar tais casquinadas.

Corre à sala a rir e pergunta ironicamente ao marido se teria ganho daquela vez. Mukawuki deixou-se consolar pelo sofá. Ofegou. Esfregou a cara com a mão direita por uns minutos. Pensou nos tantos momentos em que se encontrou naquela situação, tragando questões existenciais. Sem ser respondida, Bongani retalha ao silêncio:

— Sim, Mukawuki, ganhaste?

Já sem forças e nem vontade para algo, retorque:

— Não!

— Mas Mukawuki, desde quando tu jogas isso? Eu não te digo que jogo da sorte de sorte não tem nada? Quanto dinheiro já gastaste com isso? Multiplicando-o pelo número de dias que uma semana tem, pelos meses e anos em que jogas até hoje, quanto dinheiro já gastaste?

Mukawuki emudeceu-se. — Hã?! Quanto, Mukawuki?! E quanto já ganhaste? — Retomou a fala Bongani, cujo significado do nome é agradeçam.

— Yá, tens razão, mulher. Nada ganhei. A única coisa que vejo que ganhei foi JUÍZO. O jogo da sorte de sorte não tem nada. Eu é que sou o jogo dele desde 1975 e, desde então, nunca tive sorte. Basta! 

 

Carlos Nhangumele, 2022.

 


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