Os dias que se soletram em aves

Os dias que se soletram em aves
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Pedaços de nuvens. Fagulhas da carne delimitadas por penas. Grandezas do ínfimo. Hasteiam-se com toda a leveza da pétala. São plumas aéreas debicando o vácuo sideral neste vale que só sabe cheirar a barro.

É com o seu alarme que os meus dias despertam. E ponho-me na varanda desta cabana a contemplá-las – aves que são nuvens a remediar a violenta barragem do tempo. E, apesar de se passarem quatro anos após o diagnóstico, a voz do pneumologista continua em mim, a reverberar:

“Calculo que só te restam dois meses de vida... será com muita sorte se viveres mais que isso.”

Eu a ver a morte, sarcástica e pálida, a soletrar o meu nome, a intimar-me aos seus aposentos. A tossir acima do normal. A tremer em pleno verão. A suportar pontadas agudas nos pulmões. Ela a afrontar-me em tudo que reflectia a minha face e eu, em contrapartida, a recusar o seu convite até conseguir abandonar a cidade cheia de espelhos, exilar-me neste vale em que escutar as vozes das aves e contemplar o imenso verde é a única forma de se espelhar.

Todas as manhãs, antes do sorriso do sol aqui chegar, um corvo pousa no telhado, ergue a sua voz rouca, acorda-me, e por mim espera na varanda como o corvo de três olhos que guia Bran Stark para as criptas de Winterfell. E, logo, levanto-me, sento-me neste velho sofá, pego na minha flauta de bambu e começo a reproduzir algumas partes da quinta sinfonia de Beethoven. O corvo grasna alto, deleitado, convoca outras aves (tordos, canários, papagaios, tucanos, pombos...), para serem a plateia que nunca tive, em toda a minha carreira como flautista.

Quando o ar começa a rarear nos meus pulmões, interrompo o show. Abro um saco de cereais e alimento estas aves aéreas antes de se porem a escalar o firmamento. É assim que os meus dias se iniciam. E é de um modo similar que findam: soletrados em aves.

Todas as noites, dentro do silêncio que impera neste vale, antes de dormir, ponho-me a puxar o cachimbo e a relembrar a longa conversa que tive com o pneumologista após o diagnóstico:

“Que faço para viver além dos dois meses que o doutor disse?”

“Largar os fumos, meu caro. Largá-los para começarmos logo com as sessões de imunoterapia ou de quimioterapia.”

“Mas, doutor, só continuo vivo graças ao fumo. Nenhuma locomotiva pode percorrer longas distâncias sem fazer o bom uso da sua chaminé. Ademais, dizem que esses tratamentos só criam mais dor e convocam a morte precoce.”

“Largar definitivamente o vício e aderir às sessões poderá desacelerar o desenvolvimento do cancro. Entretanto, a vida é sua e a escolha também.”

Relembro também as acesas discussões com a minha esposa, aquela mulher-águia narcisista, a chamar-me nomes. A gritar que se arrependia deveras de se ter casado com um amante de cigarros. A dizer-me que preferia dormir na sala, no sofá ou no quarto dos miúdos, porque o odor que a minha pele exalava provocava-lhe náuseas. A colocar-me entre a espada e a parede:

“Entre mim e o fumo, o que escolhes? Hãã... ou eu ou os teus malditos cigarros e cachimbos.”

E eu, perante as sugestões do médico e as opções da minha esposa, escolhi não iniciar a imunoterapia nem a quimioterapia, escolhi viver com o meu cachimbo; escolhi exilar-me neste vale para respirar a natureza que é o melhor antibiótico que se pode ter.

Eis-me aqui, quatro anos depois do veredicto do doutor, a trocar olhares com os pedaços de nuvens que todos os dias passeiam nesta varanda e dançam à voz da minha flauta.

A morte, às vezes, aparece-me nos sonhos, grita o meu nome, mas, imediatamente, bandos de corvos, mochos e falcões perseguem-na, debicam-na, até se transformar em uma silhueta insoletrável a olho nu. Contudo, tenho a certeza que, quando a morte vencer-me os pulmões, transformar-me-ei, como no Cemitério de Pássaros de Adelino Timóteo, em uma fagulha da carne delimitada por penas.


Por Fernando Absalão Chaúque

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