No cabrito

 No cabrito


– Já não aguento mais, Alfredo. – Confessou a esposa, desfalecida.

Há quatro horas que aqueles três rodopiavam pela cidade. A fome abalava todos eles, mas somente Isadora decidiu interromper viagem. Se dependesse do marido e do tio, continuariam a circular por mais algumas horas pelas esteiras de betão daquela cidade, até que encontrassem a loja com os melhores preços do vestido que procuravam.

– Mais alguns minutos, minha sobrinha.

– Que se lixe o vestido.

– E não é ao teu pedido que estamos aqui, amor?

– Sei, mas por hoje chega. Fervem-me os pés e roem-me as tripas. 

Alfredo olhou para Sérgio, irresoluto. Jesus transformara o temperamento da esposa, da água para o vinho? Foi ela quem ordenou a escolta dos dois senhores para a missão: encontrar o perfeito vestido para as bodas de prata. E agora, desistia da missão. A fome era indomável. Alfredo tentou enamorar a esposa mais uma vez, mas esta mandava todos os encantamentos do marido assarem batatas no asfalto.

– Conheces alguma esquina, ó Sérgio?

– Ora pois. Sigam-me.

– Seguir? Não consigo mover meus pés de tanta dor. – Queixou-se a Isadora.

– Minha sobrinha, é logo ali onde aponto. Vês o que está inscrito por cima da porta?

– No cabrito?

– Pois, no cabrito. A razão explica! – Encerrou o Sérgio, com sotaque de Sintra e sorriso içado entre os lábios.

***

Os três tomaram a refeição. Inúmeras fatias de carne de cabrito banhadas de molho temperado meticulosamente, xima quente soprando vapores pelo ar e salada de alface, fria como uma cripta. 

Tomaram a refeição e lavaram os pratos com a língua. Quase mordiscavam os seus próprios dedos, sugando os infinitos molhos. De aquele dia em diante, decidiram que ‘‘No Cabrito’’ passaria a ser como um museu gastronómico, ao qual fariam constantes visistas. Pelo menos uma vez por semana estavam lá. Na ausência de Isadora, Sérgio e Alfredo estavam lá. Na ausência de Isadora e Sérgio, Alfredo estava lá. O mesmo fazia o Sérgio.

***

Era fim da tarde de sexta-feira. Alfredo e Isadora acompanhavam o tio para casa, depois de mais uma refeição no cabrito. Deixaram Sérgio em sua residência e rumaram para casa.

De noite, a graciosa Fernanda anuncia ao casal que o jantar já está à mesa. No sofá de couro, abraçados sob os cobertores de algodão, Isadora e Alfredo entreolham-se e comunicam um para o outro a falta de apetite. ‘‘No cabrito’’ satisfizera os seus estômagos e paladares a longo prazo.

Diante deles, uma enorme TV plasma anunciava as notícias. Antes de introduzir a reportagem, a jornalista comunicou, com articulatória requintada.

‘‘Vendedor informal nigeriano é preso pelas autoridades moçambicanas por, supostamente, confeccionar e vender carne de cabrito, quando, na verdade, se tratava de carne de cão. A matéria é com…André Filipe’’.

Alfredo experimentou uma tontura. Gritou que a graciosa Fernanda trouxesse um copo de água. Isadora sentiu enjoo e ficou em pé, em prontidão para qualquer cospidela. 

Na matéria, o jornalista relatava o caso enquanto o operador de camera mostrava a entrada do estabelecimento, por cima escrito No Cabrito. Na cozinha do local, o camera-man captou um panelão de carne fervida, e num caixote de lixo, cabeças e rabos de vira-latas. Isadora fugiu para o banheiro, de onde só se ouviram roncos de vómitos. Alfredo bebeu da água, preso àquela notícia esmagadora.

No fim da matéria, o jornalista ainda conseguiu fazer algumas perguntas ao comerciante nigeriano, algemado sob as garras da polícia.

– Sabendo que o Senhor vende carne de cão, por que é que escreveu que aqui é no cabrito, onde se vende cabrito?

O nigeriano, pouco proficiente em língua portuguesa, defendeu-se, entre português e inglês.

– No, no, no. Eu escrever em inglês alí…I said NO CABRITO…Eu vender outras carnes, but NO CABRITO.


In A Gargalhada das Línguas (Inéditos), Gerson A. S. Pagarache





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