O retorno da crise

 

O retorno da crise
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Pela janela, vejo a cacimba a ser torturada pelos primeiros raios do sol. Ouço alguém a mexer o portão. Deve ser o meu pai indo à farmácia. Devolvo os olhos à TV que ele ligou antes de se retirar. Acompanho os destaques do jornal da manhã. Dez terroristas capturados pelas Forças de Defesa e Segurança. Chapa sobe em sete Meticais na capital e há rumores de greve. Desperdício de frutas da época no mercado grossista do Zimpeto. A Universidade Católica de Moçambique lança ao mercado de emprego mais de mil licenciados. Há cerca de duzentas e trinta e cinco milhões de pessoas com asma no mundo, diz a Organização Mundial de Saúde. 

Merdas, pego no remote, desligo a TV. Está tudo um caos.


Há seis anos que a crise de asma não me atacava. Veio hoje cobrar pela longa trégua. Meus pulmões recusam o alimento. Sibilam e rangem como gonzos de uma porta há anos desabrida. Dói-me o peito. Racha-se-me ao meio. O coração cavalga, veloz. Rebolo, esqueço o niilismo, fecho os olhos, invoco o omnipresente. Antes de terminar a prece, alguém bate à porta; interrompo-a. Claro, é inútil terminá-la, pois Ele já sabe o que me apoquenta.  Ou será que despiu a omnisciência? Acho que não!

Levanto-me da cama. Piso descalço o assoalho frio. Tenho o corpo álgido como se caminhasse pelado numa floresta de gelo. O inverno impera na ardilosa língua da metrópole e nos meus brônquios cheios de intermitências respiratórias.

Apesar da visão meio turva, vejo o Assim falava Zaratustra pousado na escrivaninha por cima do meu HP. Ontem, depois de terminar a análise e interpretação de dados de uma monografia encomendada fiquei a lê-lo até começar a toscanejar.

Abro a porta, esbarro-me com o meu pai. Raramente bate-me à porta nas manhãs. Muitas vezes, prefere mandar mensagem, quando tem algo pontual por me comunicar nestas primeiras horas. Está vestido a militar. Há quase um ano que não o via fardado. Está na reserva, entretanto, quando lhe apetece, veste-se assim e vai ao quartel apenas para combater a nostalgia.

"Não vais trabalhar, filho?"

Ao tentar compor a resposta, começo a tossir como se todos os meus órgãos internos quisessem sair pela boca. Sinto o meu sangue caminhar letárgico. Doem-me as articulações. Há um zumbido agudo nos tímpanos. Apoio as mãos aos joelhos. A visão fica mais turva. Sinto-me suspenso num vácuo. O meu pai transforma-se numa silhueta embaçada. O peito continua a rachar-se-me ao meio.

"Aguente firme, Jorge!"

Ele abraça-me. Guia-me de volta à cama. Orienta-me a deitar de costas. Cobre-me com o lençol, pousa-me a nuca na almofada. Corre às janelas (ouço as suas enormes botas a castigar o chão), abre-as, encolhe as cortinas.

"Relaxa, filho, respire fundo... calmamente!  Concentre-te na respiração."

Sigo as suas orientações. Minutos depois as tossidelas cessam. O coração serena-se. Ele puxa a cadeira lá da escrivaninha. Senta-se do meu lado esquerdo. Contempla-me, exibe-me um singelo sorriso como se nada de anormal estivesse a acontecer.

Imagino o drama que a minha mãe faria se fosse ela no lugar do meu pai. Gritaria, choraria como se visse um cão do inferno ceifando-me. Pensando nela, há quase um mês que não a vejo. Falamos apenas pelo celular. Desde que saiu daqui de casa, o meu pai não gosta quando vou visitá-la. Ainda há muito ressentimento entre eles, talvez.

"A que horas começou?"

"De madrugada, pai."

Começou tudo depois de um pavoroso pesadelo. Gojira apertava-me o pescoço enquanto Ahemait arrancava-me o coração. E eu, consciente, mas não conseguia emitir a voz e gritar por ajuda, nem mover alguma parte do corpo. Lembro-me do sonho com total nitidez. Mas sobre ele nada revelo ao meu pai. Senão repetirá a sua recomendação de sempre: colocar alguns grãos de sal debaixo da almofada ou enfiar um palito no cabelo antes de dormir para espantar os feiticeiros que, segundo ele, são tantos aqui no nosso bairro.

De novo, vem-me à mente a imagem da minha mãe, há seis anos, comigo na enfermaria e uma enfermeira simpática a enfiar-me a bombinha de asma na boca...

A voz do meu pai degola-me a lembrança:

"Vou à farmácia comprar anti-inflamatórios... ao quartel irei amanhã."


O meu celular vibra e pelos pop-ups exibe-me, primeiro, o contacto, e depois, a mensagem. Pedagógico Colégio: Prof. Jorge, já está no serviço?

Respondo: Bom dia, boss! Não consegui vir, estou mal de asma. Ainda estava para mandar uma mensagem.

No momento em que envio esta resposta recebo uma outra mensagem. Marta Cliente: Olá, Jorge. Que tal a minha monografia? É que o supervisor já está a me pressionar e diz que no próximo mês vai ao Brasil...

E respondo: Olá! Já fiz a análise e interpretação de dados, amanhã escreverei a conclusão. Ainda nesta semana termino tudo.

Largo o celular. Penso em mim e nesta crise que, depois de seis anos, decidiu hoje voltar a me atormentar; apesar de estar agora amenizada, os pulmões continuam a sibilar e a ranger como gonzos de uma porta há décadas desabrida.

Maldita asma!


Por Fernando Absalão Chaúque

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