à Nivalda Marrengula
/a miúda que sonha ir ao lar/
Hoje, passei por um lugar onde o tempo havia deixado de existir, as pessoas daquele lugar a reinventar um outro tempo. A lembrança da ruína de loja permanece imponente, como se ainda houvesse a esperança de algum dia voltar, de passear pelos corredores da casa, de limpar os moveis, de descer a mercadoria e encher as prateleiras na loja.
O varandim da loja serve de assento na espera por um autocarro
para a outra margem do mundo. E na loja anda o silêncio à roda, a sombria roleta do tempo, grinaldas de teias.
fuck you, lêem as pessoas em transito – se escrito qualquer lugar!
Ao chegar a nhacodja, dei-me de chofre com o lume das palavras a arder na parede,
escuro fogo – fuck you.
A língua,
arde!
O mordomo antes de morrer – a passar o pano pelos vidros, a impedir a gente de sentar no varandim esperar autocarro, a desmontar canos de água da chuva na cisterna a ameaçar transbordar, a faxinar o sisal no jardim – um homem integro na guarda da loja.
Houve rumores de lá no interior existir um baú de muitos escudos, missangas
e pedras escondidas nas gavetas do balcão,
um aparador de madeira de umbila.
Duas décadas depois, há poucas esperanças de a loja reabrir – devia já há muito a esperança ter morrido – à míngua o sonho de ver aquele branco de bigode branco, e cabelos caídos
como capim seco
e o cachimbo a morder na boca.
Hoje,
as pessoas afiam gumes de catanas, canivetes, no varandim; as declarações de amor nos poros da parede. À noite, acolhe namoros de adolescentes! A loja um tempo com mil tempos.
Uma manhã, o mordomo sentado na cadeira forjada de ferro, a cabeça flectida,
morto, imagine-se.
Os alunos
no caminho da escola, a faltar pentearem-se os cabelos, pasmados com o mordomo não se recolher até sol tarde
a ir embora no céu atrás de farrapos de nuvens. Ou então, se decidira sentar morto. A boca,
o lábio inferior descaído. Os cabelos em caracóis. Um quarto para as sete em ponto. As vozes,
vozes de agora não lhe arrancam do sono – os mortos não se levantam com as vozes. E sem protesto, entrou no ataúde, o casaco preto abotoado, revestido de cacimba.
Veio tarde a história de nunca lá existir no interior da loja um baú de muitos escudos, missangas pedras preciosas escondidas nas gavetas do aparador de madeira; nem fazendas em cabides pendurados no guarda-fatos imóvel de cimento.
Escreveram
fuck you na parede da loja – escrever é um acto de dominar
o tempo
A jipe parada no pé da laranjeira, as pedras
nas rodas. E o pombal do telhado nenhum pombo, todos foram embora
mais tarde, o corpo (do mordomo) sonha pelo túmulo dentro na sua sesta; e há o incómodo da erva daninha no sopro das palavras sob a lápide. Soube no dia seguinte do enterro do mordomo, a parede despertou com aquelas palavras - fuck you - escritas a spray na loja de Amadine Cunha – escrever é um acto de dominar o tempo; e toda a gente que por ali transita lê como se a cuspir pedras na boca,
fuck you!
nhacodja, terça-feira, 16 de Agosto de 2022.
Nelucha das Dores