"a poesia não é só ópio ou terapia, é mais alguma coisa sobre contribuir para o país", Otildo Justino Guido e Fernando Absalão Chaúque conversam com Jeconias Mocumbe sobre Calvário e a Cruz

Calvário e a cruz


Jeconias Mocumbe é cognome de Edilson Sostino Mocumbe, nascido a 02 de Março em Xai-Xai, Província de Gaza. É gestor do Blog tindzila.blogspot.com, co-mentor e Secretário-Geral da Associação Cultural Tindzila; fundador, diagramador e coordenador editorial da Editora Massinhane Edições sediada na cidade de Inhambane; formado em Ciências Policiais pela ACIPOL, residente actualmente na Província de Inhambane, co-autor da obra de poesia intitulada “Espiritualidade Poética” publicada pela editora Kulera. Ademais, é autor da obra “Calvário e a Cruz - antologia híbrida” e é em torno dela que Otildo Justino Guido (OJG) & Fernando Absalão Chaúque (FAC) com este autor conversam.


FAC: O primeiro caderno deste livro chama-se "O humano sob a máscara" e a maior parte dos textos nele contida é dedicada a pessoas próximas ao autor. Perante este facto, durante a leitura surgiu-me a seguinte questão: até que ponto a realidade factual e a nostalgia tornaram-se matéria para os poemas de "Calvário e a cruz"?

JM: A poesia tem dessas manias de ser uma possibilidade. Ao se construir um texto há possibilidades de sermos nós ou outra pessoa. E os poetas alimentam-se das ambiguidades que o factor humano nos lega. 


OJG: Na página 20 podemos ler “Estou a ser adiado nos convénios de lançamentos de novos génios”. Como olhas para os círculos literários, as associações e organizações culturais em Moçambique; achas que os novos escritores têm tido espaço?

JM: Seria suspeito de dizer algo sobre isso já que acabo de fundar a Massinhane Edições, uma editora cuja filosofia é romper com o provincianismo das letras. Quanto a questão, ficava por aqui, contudo vou acrescer um desabafo pessoal: penso que a culpa não é das associações ou organizações culturais, mas sim das pessoas que estão em frente delas que são parasitas e sanguessugas. O nosso outro grande dilema é esta coisa dos de Maputo e os de fora de Maputo. 

Tenho experiências amargas sobre a segregação que acontece nesses circos, por exemplo a questão dos concursos literários lá de Maputo servirem de base para legitimar escritores/ poetas. Outra coisa, se você não é baseado em Maputo, independentemente do que faça, é preciso ter tido um destaque nesses concursos para que seja convidado a uma feira, nacional ou internacional. 


FAC: Na página 19 temos as seguintes afirmações "as leis moldam o instrumento que se quer para uma nação"; na página 26 temos "E a pátria é o que se procura por aqui.". A poesia, para ti, além de ser um campo de exploração das sensações é também um canal para exercer a cidadania e o patriotismo?  

JM: Só somos verdadeiramente Homens se percebermos o significado da nossa humanidade. E a humanidade se insere dentro desses valores. Andamos numa sociedade doente e a poesia não é só ópio ou terapia, é mais alguma coisa sobre contribuir para o país.


Jeconias autografando Calvário e a cruz

OJG: Na página 40 lê-se o seguinte: “O suicídio nunca me foi atraente embora pense ever other day na fragilidade dos meus pulsos beijando a lâmina". E na página 57 afirma que “a estrada do homem sempre tem sombra”. No texto da página 42 lê-se ainda que “Fica a dúvida de não se saber a quem recorrer nas preces, pois tal Deus que se tem nas crenças hodiernas é mais uma metáfora demoníaca, tão diabólica. Cúmplice da ruína”. Achas que a poesia só nasce de uma veia aberta e da irreverência?

JM: A poesia faz-se de múltiplas vozes. E ela pode nascer do nascimento, da reprodução, do crescimento ou da morte. É tudo uma possibilidade.


FAC: Na página 38 estão estampadas as expressões "gramática do abismo", "métricas do choro infantil", "saudades no halo da lâmina", e "segredos que a distância nos privou de contar". A concepção deste livro terá sido um bálsamo contra seus fantasmas internos?

 

JM: Tudo é possível quando se escreve


OJG: Nota-se, neste livro, que Jeconias  é um poeta extremamente desassossegado em relação ao amor, a vida e a sua própria escrita. Além disso, podemos ver durante o livro o que o prefaciador Elísio Miambo intitulou como “um Jeconias Mocumbe que se quer igual a si mesmo” pág.8, e na página 20 sentencia que “é para o futuro que escrevo”. Para ti, qual é a relação entre o tempo, o desassossego e a poesia?


JM: Não se pode compreender o mundo através de uma lupa. Estaria eu a induzir a quem quer que seja a pensar em relações que não lhe vão valer em nada, enquanto deveria é pensar na relação que tem com o próximo, ou no que vai comer amanhã e com esta crise, a vida lá em casa não está fácil. É por isso que abri um negócio de livros mas há um dilema, “a poesia não se vende e exige completa fidelidade” (Xiphefo, 2001, pg.4). Enfim, é sobre amar o outro que escrevo. Tenho largas dúvidas que a minha poesia seja jubilada, mas busco eternizá-la através da construção de um simbolismo próprio e característico para que me leiam sem muita pressa.


***

Dois poemas do livro "Calvário e a Cruz".




1.

POEMA MADRUGADA 

Com quantas faces a nudez de uma alma se expressa na galhardia dos espelhos? O abdómen crivado de espinhas. A casa restante, este punho e paz que se atrelam oblíquos. A condolência da noite que insufla o berço estrelar. O silêncio imundo. A sirene do medo sobre a ilha das montanhas. É tudo e, o resto, apenas um papel magnético contrafeito como a língua pesa na bunda de uma recém viúva. Que filtra os gomos do além. No pacto das ostras. Olha que não me lembro mais quanto tempo se passa a tentar escrever sobre esta tela no conforto da luz apagada. Com formigueiro nos pés da cadeira que assenta a minha bunda esponja. Risos. É este chão a trilha sonora da angústia. A confissão do mosquito na guilhotina das palmadas dos sem tecto. E ninguém entende este sotaque de poemas. Que fede. Um horror para os críticos da minha época. Estou a ser adiado nos convénios de lançamentos de novos génios. E não fico triste. É para o futuro que escrevo 

sê que escrevo.


2.

…]

a vida é assim, uma vez a outra, 

tens uma saudade oculta nos ombros 

tens medo do que se passa debaixo 

de uma cortina velha em solavancos 

tens medo de atravessar a sombra da porta à noite 

tens medo que um rato te surja no meio do sexo 

tens medo do que pode vir a ser o implodir do silêncio no sono 

tens medo da pancada de uma só palavra fossilizada nos lábios 

tens medo dos estalidos que percorrem o rio adentro 

tens medo que te arrastem pela metade no escuro do corredor

 tens medo das bocas que por ventura te clamam 

tens medo que as grades selem os alfinetes dos pés 

tens medo do que se esvai como vulto no subconsciente

 e importam-te todas as horas passadas no amuo 

dos espaços vagos nos tecidos da alma em constante trânsito

 o bosque por onde passam as aranhas absortas 

têm a mesma angústia e a intensidade dos pêssegos exprimidos 

por isso que eu, ao estar aqui, no encalço deste pássaro constipado

 e deprimido, cantando, I need to met you again, 

engato a placidez da primavera 

e procuro conhecer-te uma vez mais, sem agora, a ilusão dos foguetes.

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