. o diário da morte .

 

. o diário da morte .
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Foram três pancadas agudas sobre a folha da porta. Não abri. A casa permanecia incólume antes de a estrada atravessar as paredes. O embargo chegou-nos através do chefe do quarteirão a mando do Município após edificarmos o quarto do Tonito. O homem veio de Namacurra empoleirado num camião de hortícolas para auxiliar nos afazeres domésticos. Era noite. Encostei o ouvido na maçaneta. É o Sebastião? Não. Pronto, é o Cristóvão. Nada. Então, por que veio?!

Otília Ventura morreu. Como? Otília morreu. O mundo desmoronou-se; suei; alinhei os olhos no espelho da estante. O casebre é uma amêijoa na sombra do mangal. Enclausurei-me no tempo: a dor do ventre e das coxas foi aguda. Domingo de ramos. Chegamos ao hospital. O Fabrício colocou a sua mão direita no coração. Desmaiei. Levaram-me de maca. A bolsa estoirou-se, ouvi essa voz nos interstícios da memória. Um estrondo na madeira. Magiquei com a razão atribulada: Otília. Ventura. Morreu. 

Há dias que não botava os pés na calçada desde que a Vereação mapeou o asfalto contra os tijolos do sacrifício. Que me atravessem deitado no sonho. Arrumei a cabeça no travesseiro. Na mesinha de cabeceira tinha um maço de cigarros, álbum de fotografias e uma bíblia sagrada. Adoro ler os Salmos. Os meus filhos decalcaram o ofício do pai. Outro baque na porta. O aposento cheirava poeira. Tossi. Arrastei-me religiosamente. E enfiado no roupão de dormir calcei as pantufas. Quem é? Silêncio. Aproximei-me à gambiarra e reli em surdina a súmula da primeira carta do meu primogénito: mãe, encontre-me na escrita. Abraça-me em cada pausa do parágrafo. É na palavra onde se busca o sossego. Repousa o pedal da máquina de costura. A agulha cose saudades! Vila Cabral, aos catorze de Setembro de oitenta e cinco. Era pela trigésima vez que relia a cacografia do Júnior; uma vez por ano. Enxuguei as lágrimas. Amarfanhei a missiva e joguei-a para todo o sempre na retrete. Tapona na porta. Não me contive. Fiz o sinal da cruz. 

- Quem é? 

- Sou eu. 

- Quem? 

- O vizinho da Otília, estou atrás dos agasalhos, pois lá faz frio, mãe!

As pernas bambolearam-se de medo enquanto punha a chave no orifício da fechadura. Estatelei-me no assoalho. A brisa fazia-se casa adentro pela janela entreaberta na sala de estar. Um rato farejou-me as pantufas. Fitei o retrato do meu marido Fabrício Ventura com a cruz à tinta vermelha na testa, trajado de boina, as insígnias no lugar, preso por uma bucha na parede.

Por Ernestino Maute

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