Alucinação visual e acústica do diabo


Sento-me à escrivaninha. Com o indicador, ressuscito a máquina. Ela afronta-me com um imaculado papiro - um óvulo ansiando a fecundação. Posiciono os dedos diante dos pequenos rectângulos ortográficos. Acaricio-os como se afiasse enxadas e catanas antes de um intenso labor.

Fecho os olhos. O ar sacia-me os pulmões. Liberto-o, suavemente. Repito o exercício algumas vezes mais. Ajuda-me a limpar o encéfalo, a reciclar as ideias.

Abro os olhos. Diminuo a luminosidade do papiro. O cursor é um vagalume obstinado. Pisca. Pisca. Pisca e sussurra-me:

"Mãos à obra, escritor!"

Tenho os dedos a salivar. Ansiosos. São esfomeados cães de Pavlov. A cabeça fervilha, toda. Tenho o conceito geral do texto, mas custa-me materializá-lo. As palavras andam a inúmeros anos-luz distantes de mim. A musa abandonou-me. O oásis secou. E a voz do cursor continua:

"Não tens nada a dizer, senhor escritor?"

Tenho. Um escritor tem sempre algo a dizer, acho; o empecilho, às vezes, é como dizê-lo. Escrever é sempre um desafio. Uma longa busca por novos caminhos. Entretanto, o derradeiro destino é sempre o mesmo: o texto - o exorcismo da monotonia planetária.

Penso na história que quero estampar neste papiro. Revisito o meu bloco. As anotações continuam lá. Em estado bruto. Tenho que pô-las em vida.

Ouço o bulldog do vizinho a ladrar. Chama-se Diabo. Ladra, raivoso, perdido nas suas alucinações visuais. Sempre que ouço ou vejo este quadrúpede, irrequieto, detrás das grelhas do muro, lembro-me do livro O enterro do Diabo de Gabriel Garcia Marquez que o seu dono está sempre pousado na varanda a reler.

Ora, a minha namorada ressona na cama detrás da escrivaninha. Respira com raiva. Deve estar a sonhar com a discussão que há bocado tivemos.

  "Amanhã é domingo!", começou ela.

"Sei!", respondi com os olhos perdidos nas páginas do livro de crónicas de António Lobo Antunes. Acho que lia a crónica intitulada Os sonetos a cristo ou A existência de Deus.

 "Então, vamos à igreja!"

"Vai tu... eu irei num outro dia.", ripostei.

"Sempre dizes isso. E nunca chega esse tal dia."

"Quando quiser... irei."

"O diabo está a te dominar. Precisas de Deus na tua vida."

"Quando o momento chegar, irei. Aliás, Deus não está na igreja."

"Sei. Mas congregar é importante. Ninguém vive sozinho. Mas… enfim... como pretendes passar o  domingo?"

"Como um dia normal."

 "O que farás?"

 "Escrever."

"Deixa dessas suas alucinações. Nunca serás um escritor de sucesso. Serás sempre medíocre. Tens de deixar essa tua vida de diabo para poderes alcançar o sucesso."

Em resposta, afrontei-a com um olhar dos infernos. Calou-se. Enfiou-se nas mantas. E está agora a ressonar mais alto que antes. E eu? Continuo aqui, encruzilhado nesta alucinação. Sou deus enquanto escrevo.

Sinto a garganta seca. Bebo um copo de água. O whisky acabou. O metical também anda longe de mim. Repito, sou deus toda a vez que nesta escrivaninha me sento. Um dia, bem disposto, começo a cobrar dízimo a todos os meus personagens. Não podem viver em vão.

Depois de uma longa espera, remato a primeira frase. Releio-a  muitas vezes; percebo que a sua construção não desencadeia um efeito estético-poético profícuo. Apago-a, esgotado. No papiro, resta apenas o cursor a piscar. A gritar: 

"Ainda não tens nada a dizer, senhor escritor?"

Lembro-me da frase de José Saramago na intro da música Poetas de Karaoke de Sam The Kid:

"Não ter já mais nada para dizer e continuar a escrever é um crime. Porque não tem o direito de continuar a escrever se não tem nada a dizer."

Desligo a máquina. Abandono a escrivaninha.


Fernando Absalão Chaúque

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