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O velho ajeitou-se na cadeira. Arrancou o cotonete que sempre mantém entalado atrás da orelha, nos ruços cabelos encarapinhados, e enfiou-o na página onde havia interrompido a leitura. Encostou o seu corpo no espaldar. Arranca os óculos do rosto e mete-os na algibeira do peito da sua balalaica dos anos setenta. É maneira que encontrou de conservar o tempo.
São dezanove horas e trinta minutos.
Olhou as horas no telemóvel com uma racha e as letras a tremer no LCD, e os teclados desbotados atados por uma borracha para fixar a bateria. Havia mais de hora com o corpo curvado sobre o livro. E com o dedo na boca a resvalar na língua húmida, molhava-o com a saliva e abria a página, os dedos a sulcar as folhas.
Ao entardecer, o velho saiu do quintal com o portão de chapa de zinco enferrujado, há muito inclinado. Desce pelo caminho, desaparecendo com a erosão, com as mãos escondidas nos bolsos das calças caqui, e assobia uma melodia melancólica. Na mochila pendurada ao ombro, a terrina térmica com caranguejo a amendoim, um plástico de tapioca, e um bebedouro de água da chuva. São hábitos de velhos tempos, o velho guarda não outras águas, bebe apenas águas dos céus, água da chuva que com toda paciência da idade, armazena ao do longo ano, colocando bidões de vinte e cinco litros nos troncos dos coqueiros por onde jorram as águas durante as chuvas.
O silencio da lâmpada derrama uma frouxa luz amarela no tecto, luz crua, com insectos envaidecidos. Puxa pelo pequeno rádio de pilhas e procura a estação. Um ruido de uma chaleira a ferver ouve-se. Agita o rádio no ar em busca de melhor sinal. Quer uma voz boa, audível. São dezanove horas e trinta e um minutos. Acorda a antena – o ruido da chaleira persiste. Com gestos de um pardal assustado, apressa-se a vasculhar por um fio na mochila, amarra-o na antena e o suspende nas grades da janela. Um cão magro, vira-lata, toma o susto, quando o velho se ergueu, com a fralda descartável nas fuças. Do leste a frescura chega pelas grelhas da parede do muro, esquiva o tronco escuro da acácia, e desloca-se-lhe sobre o rosto e pontas dos dedos.
O velho está afundado na cadeira com estofo gasto, encosta o pequeno rádio de pilhas no ouvido. Recolheu as duas pilhas estendidas nas soalheiras da tarde, no banho de sol, encaminhou-se para a cozinha, acendeu um cigarro, e pôs-se a chupar o ar quente para os pulmões.
O velho escuta no pequeno rádio de pilhas, arremessos de pedras, o rumor de fogo a arder (o locutor diz que são pneus a arder no meio do asfalto), os trapos de fumo negro sobem ao céu em miniatura de um diabo em ascensão, a trepar o escadote invisível do céu. Ouve um disparo, depois o outro, imagina o frio de bala a atravessar-lhe o coração (mas são balas de borracha e gás lacrimogénio, diz o locutor com voz excitada); ouve milhares de mil passos de pessoas em debandada; um cão a latir, outra gente a insultar. O rumor de vozes cresce no pequeno rádio de pilhas do guarda nocturno.
O velho desdobra as mangas da balalaica arregaçadas, e esfrega as mãos ou para afastar a frescura que lhe gela os ossos dos dedos ou pelo medo da notícia da greve que eclodiu poucas horas atrás.
A voz do locutor falha. As pilhas fracas. O rádio desliga-se. Esbravejado, o velho lança as mãos no livro – retoma a leitura.
Nelucha das Dores