O cachorro de cabelos loiros

Fonte


Se você não viu o cachorro (…),

Não tem problema.


Charles Simic


O cachorro é de pêlos brancos, muito brancos como algodão. Não há outra razão que lhe faz perder a cor. É desleixo do dono. Ou ainda do cachorro «não sabe ser branco é coisa de luxo». O cachorro parece mecânico de oficina qualquer da rua, na árvore de sombra, uma maçaniqueira. Os pêlos, revoltos, muito loiros. Um desleixo puro como a água da sede. As barbas lhe caem em tumulto nas fuças.


Passeio pela rua para ler, como se sofresse de uma leitura sonâmbula. Fito as gravuras no muro da cervejaria «há uma mulher grávida, prestes a parir, com uma garrafa de cerveja a caminho da boca escancarada; e um homem, cabelos rastas, com a mbira nas mãos».


Ao redor da tenda, com a mesa de bilhares «o moço acertou com o taco a bola cheia. O adversário palita os dentes com graveto de fósforo»   


Revejo na memória o doutor Sampaio, notório, em «no ano da morte de Ricardo Reis» conversando no hotel Bragança com a filha Marcenda, da mão com prótese. Marcenda agarra a mão inerte e coloca-a sobre a mesa, como um animal de estimação. 


Torno a olhar para as gravuras, os olhos da mulher estão sóbrios, os lábios grossos, e um piercing nas sobrancelhas. O homem raspa com as unhas os dentes de metal, raspa a alma da mbira «imagino». 


O cachorro de cabelo loiro late nervoso «os dentes arreganhados» para o moço que se nega a pagar a cerveja com uma taxa extra para transacção. Olho para o cachorro, de pêlos brancos, muito brancos como algodão «os cabelos são loiros». O cachorro morde as calças. Os olhinhos ocultos. As patas demasiado curtas. Parece um urso. Muito sujo «não sabe ser branco é coisa de luxo».


Nelucha das Dores 

Enviar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem