A solidão e a morte são sinónimas
* * * * * *
Mais uma vez, o alarme toca. O toque
é um grito da mamana de Magumbas. A manhã nasce em beijos leves, que crescem no
meu acortinado. A alvorada são dois pedaços de reflexão: um à desistência e
outro à persistência. Ando longe do pensamento. Evito-o. Pensar requer um tanto
esforço. Agora, na eternidade de mais um sono, tento acordar. Desisto. Acordar
é uma aceitação assinada ao sofrimento. Levanto-me de olhos cerrados. O chão está
gelado. Avanço pelo corredor da casa. Na verdade, nem corredor aqui há. São
dois compartimentos divididos em quarto e sala. Essa casa está mais para dormir
que para habitar. Toda ela é um sono.
Abro o pano que serve de porta na
minha casa de banho. Não me demoro. Baixo logo o calção. Do pênis vai jorando o
xixi. O cheiro convida-me para a regar o chão com a saliva. Obedeço ao convite.
Saio. De longe, reparo a casa de banho com ternura de quem contempla, pela primeira vez, àquela precariedade. Volto ao quarto. Sento-me novamente na cama.
Pensativo. O tempo vai ganhando o seu espaço. Do nada, deito-me sobre a cama. Contemplo
as chapas-de-zinco, húmidas e velhas, logo penso: a desistência é mais um
convite à morte. É mais um passo largo para uma total inexistência humana. É
como dizia a minha esposa, que Deus a tenha: a morte, na sua total inexistência,
é um desrespeito à humanidade. O morto, na sua total desvanecência, é uma
solidão à humanidade. Asseguro-vos, são saudades que sinto dela. Por isso, ando
longe do pensamento.
Decido arrastar a cadeira para o
quintal. Arrastar é a única coisa que posso, com a idade que tenho. Quando se é
velho, não se morre de doenças, mas de ausências. É essa ausência que me
desfalece a vida. Nas mãos, carrego um livrinho de poemas. O dia não só me
convida para uma desistência, convida-me, também, para uma leitura. Acreditem,
ler é um treinamento à velhice. Abro o manual. Com ternura e ardor, vou
decifrando cada estrofe que compõem o
livro.
Um tempinho mais tarde, o Sr Nyavo
vem caminhando em minha direcção. É uma vista? Penso. O velhote há muito que não
me presta visita, o que lhe deu? Mais uma vez, desisto do pensar. Ando longe do
pensamento. Sem demoras, empurra a sua voz já envelhecida.
— Por que tanta sentadela, aí, amigo?
— É para atrasar o tempo.— Retorqui
com a voz embargada de cansaço.
A velhice já é um atraso no tempo. Com essa idade, já nem
se pode pensar tanto sobre o tempo. Faz conta morrer: já não se teme a morte, porque
a solidão ensina-nos a morrer. A solidão e a morte são sinónimas.
— Mas, e tu, por que, em plena
conclusão do dia, fazes a tua introdução? — Pergunto-lhe.
Fingiu um
sorriso e, prontamente, reagiu.
— É só uma visita. Visitar é uma forma
de amar alguém.
Nyavo foi meu companheiro de combate, mas não legítimo.
Fomos, no antigamente, servidores da pátria. O tempo negou-nos a infância, como
o país negou a escola à Geração 8 de Março. Hoje, é na solidão que procuramos
um pedaço de alegria. Nos sozinhando no tempo.
Minutos volvidos, somos atropelados por um imenso
cansaço. É muito engraçado o modo de pensar a minha própria vida. Canso-me, só
por estar cansado. À noite vai subindo os degraus do tempo. À despedida, o
velho Nyavo diz: — Para a semana, venho-lhe com mais vistas. Você precisa mais
disso.
Então, avanço para dentro, arrastando a cadeira. Enquanto
caminho, a mamana de magumbas, regressa da sua ronda magumbeira. Acreditem,
essa mamana ensina-me mais esperança que coragem. É nela que vejo a
persistência de uma vida melhor. Para a semana, pedirei ao velhote que me
ensine a eternidade...
Gaspar A. T. Pagarache, 2022 (In, inéditos)