Cicatrizes - o desabrochar da existência

 

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A vida é feita de processos que revitalizam os nossos passos, pegadas que caminham em busca do horizonte colorido; paisagem compreendida pelo coração e não pela consciência, oásis desconhecido pelo espírito! A vida é assim mesmo, feita de equilíbrios e desequilíbrios racionais e ou emocionais, incertezas que, às vezes, despertam o nosso potencial, que teima em se ocultar na crosta mais densa do nosso ser como um minério que serve de bússula para os garimpeiros. A vida é um mar de cicatrizes.

As cicatrizes fazem parte da nossa vida, é díficil ignorar tais sinetes, assim o diz Monarca, rapper e um dos integrantes do grupo Sagrada Família, na música intitulada “cicatrizes” que conta com a participação vocal da Whitney Melody nos coros. A música manifesta a trajectória de um indivíduo que a sua vida é feita de mudanças constantes no que se refere ao seu dia-a-dia. E dessas mudanças permanentes, o indivíduo vai ou foi absorvendo informações que o ambiente em que estava inserido foi-lhe dando. Num estilo característico de storyteller que me lembra o rapper Simba na música “daddy never comes with flowers”; Ivanilson para os mais íntimos e Monarca nos meandros artísticos, destila a sabedoria de um “judicioso em tenra idade” na composição grafada na escala de Fá sustenido, num género RnB mesclado numa alma hip-hopiana. Whitney recebe-nos com sua melódica voz para fazer jus ao seu segundo substantivo e mostrar que o mesmo, não é um cognome escolhido fortuitamente. Melody, invade a composição após as primeiras pegadas do piano, como se fosse a anfitriã da composição; talvez foi uma estratégia para criar suspense, pois, é sabido que o ego dos rappers vive lá no alto, na terra das luzes cintilantes... “O que foi que eu fiz? Tantas cicatrizes, eis que com a minha idade não condiz”, é a frase cantada pela corista que em simultâneo serve de estímulo para Monarca desatar os versos carregados pela sua alma vivente num corpo nômade. “Hoje recebo minha nova cicatriz”, o suspense fragmenta-se, a voz do rapper alvorece dando azo aos sentimentos que entremeam no seu íntimo. 

“A vida não é tua amiga, ela te obriga a crescer”, é a primeira lição que o “judicioso em tenra idade” deixa, revelando que o crescimento é um processo inevitável para qualquer ente que tem fôlego. E ele não se deixa intimidar pelo beat que vai ganhando certas nuances que afagam o órgão auditivo; não se deixa ficar numa única lição, a lyric no seu todo é uma prelecção digna de ser canonizada como “aula de sapiência”.

Num tom de voz agradável aos sentidos, Monarca trata a instrumental de “tu p’ra tu”, num intervalo lúcido de um rapper que sabe o que faz. “É impossível falar da dor, sem falar de atenuantes”, casos notáveis; a dor é menos pesada quando temos um refúgio lúcido e confortante. E o refúgio torna-se um paraíso quando estamos cercados daqueles que nos trazem energias positivas, afirma o rapper: “minha família, vosso amor é algo motivador [...], obrigado tio Victor, meu mentor pelo apoio e motivação; meu tio mais novo se tornou meu irmão”. É gratificante quando o reconhecimento é expressado enquanto os indivíduos ainda estão em vida; creio que, o tio Victor, quando ouviu a homenagem do seu sobrinho-discípulo, ficou alegre com os olhos a transbordarem a felicidade carregada pelo coração. 

“Cicatrizes” além de ser um enredo de um corpo em movimento, é uma carta de homenagem para os Mestres do Ivanilson enquanto ser que sai de uma família firmada na fé cristã, como podemos notar no seguinte excerto: “passei minha infância com meus avós, crentes e tementes a Deus”. E porque a vida é feita de metamorfoses cíclicas, a vida do Monarca enquanto Ivanilson, também foi afectada pelas metamorfose ao ponto de parir “cicatrizes”. Ele trouxe nas entrelinhas da composição algumas mudanças que o transformaram em um indivíduo culto e com pés assentes na racionalidade; algumas metamorfoses são expressadas pelo seguinte excerto: “como seria se eu não tivesse fugido da casa do meu pai da primeira vez que vim estudar em Maputo; é uma fase na minha vida que deve ser esquecida”. 

As lições que foram incutidas ao Monarca pelos seus entes queridos, permeiam na toda composição, como podemos notar no seguinte verso: “ignorar as maldades do mundo é uma falha, mas pensar sempre nela (a maldade) nos atrapalha”, creio que quem o ensinou isso foi o tio Victor (risos). 

“Cicatrizes” é feita pela intercalação da voz do Monarca com a da Melody, numa cumplicidade de criar inveja a qualquer um que se julga ter boa voz para cantar. Whitney dá azo a essência das suas cordas vocais que gravitam no soprano, sempre que o protagonista do enredo dá uma pausa para humedecer suas “barras”. “O que foi que eu fiz? Tantas cicatrizes, eis que com a minha idade não condiz”, sempre alvorece como se fosse pela primeira vez que a senhorita Melody pega no micro, pois sua paixão pela Música é  indelével nesse gorjear.

As cicatrizes permeiam nossas escolhas, pois cada escolha que fazemos estamos sujeitos a  erros e acertos, cabe-nos fazer escolhas acertadas, pois “a vida é má”. Há muito por se explorar no “cicatrizes”, e minhas palavras não são suficientes para esgotar o conteúdo valioso expelido pelo Monarca e pela Whitney Melody, por isso partilho o link: https://roberto-news.blogspot.com/2021/08/monarca-cicatrizes-feat-whitney-melody.html?m=1

para que explores a música na íntegra. Tenha uma óptima escuta!


Por Arnaldo Tembe

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