Virgília
Ferrão é autora moçambicana com quatro obras publicadas. Sua primeira obra foi
lançada em 2005, O Romeu é Xingondo e a Julieta Machangana, pela Imprensa
Universitária da UEM, enquanto a sua terceira, Sina de Aruanda, em Dezembro de
2021, pela Fundação Fernando Leite Couto. A última obra da autora é uma
antologia por ela organizada, que reúne dezenas de autores, sob o tema ‘‘Espíritos
Quânticos: Uma jornada por histórias de África em ficção especulativa’’.
Assim,
o poeta moçambicano Alerto Bia e o revisor e ensaísta Gerson Pagarache
reuniram-se com Virgília Ferrão para uma conversa sobre o último livro solo da
autora: Sina de Aruanda. Abaixo, segue a conversa:
1. Alerto
Bia (AB): "Sina de Aruanda"
revolve o pretérito dos prazos e seus reinados para nos trazer um romance
platónico entre clãs e plebeus. Como foi lapidar esta ideia até chegar ao
produto que hoje temos em mãos?
Para ser
honesta, este caminho não foi planeado. A ideia da história surgiu-me ainda na
época da faculdade e, nessa altura, a narrativa estava mais centrada na questão
da conservação ambiental. Entretanto, por muito tempo o texto viveu
inconcluído. Até que, um dia, tive acceso a vários documentos e arquivos sobre
os prazos. Foi nessa altura que voltei ao texto e percebi o que estava em
falta: a história de “Aruanda” que, já agora, é um prazo fictício. Esse caminho
soou bastante natural. É a parte que mais me empolga no processo da escrita,
quando a história, os personagens, tomam o seu próprio caminho e, no fim, tudo
faz sentido. Como a vida. Acho!
2. Gerson
Pagarache (GP): A nossa Historiografia e
as suas relíquias têm tido um espaço privilegiado na nossa literatura. Notámos,
também, o contributo da História em Sina de Aruanda. Como foi conciliar História
e Literatura?
Notam?
Fico contente com isso, com o facto de haver esta perspectiva, embora julgue
que tenha ocorrido mais um “ambientar” o enredo a uma época que pertence à
nossa história, sem necessariamente preenchê-lo com factos históricos. Alguns sim,
mas, na maioria, ficcionados. A missão de Mobora, por exemplo, é inspirada na igreja
de Boroma, em Tete, um patrimônio histórico. Frequentava bastante a região de
Boroma quando criança e, por isso, sempre foi um lugar especial. Acho fascinante
quando podemos usar a história para alimentar a ficção. A pesquisa e as
leituras que fiz foram marcantes, pois proporcionaram um bom exercício de mergulho
no passado, para nele recriar algo totalmente fantasiado. É a magia da literatura. Poder resgatar a história. Sair de
dentro de nós, para encontrar o outro (ou, nesse caso, reencontrar o que fomos,
numa viagem no tempo).
3. AB: Ao longo do enredo, suscita-se a ideia de
imortalidade da alma e sucessivas reencarnações que dão alento à trama e prende
o leitor de página em página (funciona como gatilho do leitorado), para salvar
Aruanda. Qual é a verdadeira "Sina de Aruanda"?
Gostaria que fosse o Alerto a dizer-me a sua visão
(risos). Eu sinceramente não sei. Creio que é algo que cada leitor pode
definir. Desafiando as suas crenças. Seria a Sina de Aruanda entender que o
destino é inevitável? Que o mesmo está nas nossas mãos? Que cabe a nós
salvarmos o nosso património?
4. GP: Na sequência da questão de Alerto, nesta
obra, a reencarnação é um personagem com um papel particular ou ela é só uma
forma de conceder uma segunda chance a uma história de amor outrora frustrada?
Áh, bom. Nunca parei para pensar nisso. Mas vejo a questão da reencarnação, neste livro, mais como uma segunda chance e um elo entre os protagonistas. Embora, dando voz ao narrador/narradores, quisesse explorar o campo do espiritismo. A reencarnação, a regressão, são matérias que sempre me fascinaram, na literatura e no cinema.
5. AB: Este livro termina de forma abrupta, de
cortar o fôlego. De si para si, quem é a pessoa que faz uma visita surpresa ao
Daniel de Barros, uma vez que a reencarnação da Carina (Maria Cristina) não
resiste a asma?
Tenho “apanhado” muito por causa deste final. E
perguntam-me sempre, quem toca a campainha? Já me fizeram prometer escrever uma
continuação de “Sina de Aruanda”, para explicar quem tocou a campainha. E essa
é uma questão que eu não sei responder. Sempre vi na minha cabeça, como algo que
cada leitor fosse decidir por si. Mas, já agora, tem a certeza de que Maria
Cristina sucumbiu à asma? Ou teria sido isto um sonho de Daniel? Será que ela
reencarnou de novo? Nem sempre temos todas as respostas (risos).
6. GP: Qual mundo do livro mais prendeu a autora,
século XIX ou XXI? Foi uma prisão ou uma excursão?
Definitivamente
foi o século XIX. O século XXI é o nosso, conhecemo-lo. Mas este XIX, que só
poderia ser apalpado pela imaginação? Foi extraordinário. Foi muito bom ‘‘inventar
Aruanda’’ no século XIX. Sem dúvida uma excursão agradável e libertadora,
embora fique sempre com o receio de que, provavelmente, a descrição não
reflicta muito a realidade da época (risos). Mas, para o cenário de Aruanda,
fiquei muito satisfeita com o resultado.
7. AB: Vigília é Mestre em Direito Ambiental e, em
"Sina de Aruanda", há este lado valorativo da conservação e
salvaguarda de locais históricos. Qual é a relação entre a temática ambiental
aludida em "Sina" e a sua formação ou mundividência?
Há muita
relação. Sempre gostei da área do ambiente e creio que este sentimento terá
contribuído na escolha da temática que deu pano à narrativa.
8. GP: Seu livro traz personagens de um passado
remoto para o presente, a fim de resolver um problema actual: conservação
ambiental. Visitar o nosso passado e a nossa história, de vez em quando,
continua a ser útil para a resolução dos nossos problemas actuais? Como?
Eu creio
que ajuda. O papel da literatura também é esse, ensinar, fazer-nos corrigir alguns
erros. Se não servir para ensinar ou corrigir, pelo menos, faz-nos entender certos
contextos. Reflectir sobre eles. Quem explora também o passado, através de
romances históricos, é Bento Baloi, cujos títulos ''Recados da Alma'' e ''No Verso da Cicatriz'' recomendo. Com
livros como estes, sempre podemos entender o nosso contexto passado e actual,
de onde viemos, onde estamos, onde queremos ir, ou para onde não devemos/queremos
ir.
9. AB e
GP: Para terminarmos, o que a autora destaca
considerar sobre a obra e como os leitores podem adquiri-la?
Acho que
importa destacar o seguinte: há sempre
uma segunda chance.
O livro
pode ser adquirido nas livrarias da cidade de Maputo, na Fundação Fernando
Leite Couto e na Livraria Mabuko.