Pesam-me os pêsames

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Calculo que, neste ritmo enevoado, a madrugada já esteja a dizer «adeus». As horas absorvem a frieza e a obscuridade do espaço. Sinto-me como uma língua entre os dentes. Mas justifica-se: o Bairro Vumba, onde me encontro jazido, fica entre o rio Munene e a Serra Vumba. Morpheus está atardado para o nosso tradicional compromisso noturno. E, como nas vezes costumeiras, não me assombram dúvidas de que não virá mais. Matrecou-me como lhe tem sido característico nessas últimas semanas. Custa-me a sanidade tal situação. Eu, um adulto de dezassete anos de idade. Devo descansar, mas a insónia não me outorga tal opulência. Devo trabalhar, mas a fadiga me engravida a impotência. 

Meus dois irmãozinhos dormem como um par de pedras almadas. Harifuredho, do meu lado direito, ressona inquieto; algum pesadelo o desacomoda. Herizha do meu lado esquerdo, sonha com a boca em viva voz e vomita um nome — deve ser do gajo que a embarrigou, o mecânico mulatinho. Mas eu, que estou no meio de ambos, suspenso sobre o mesmo saco de dormir, do sono não ganho sequer a ruína da sombra de um beijo. Ah! Queria apenas conseguir dormir. Queria poder sonhar ou, pelo menos, ter pesadelos como meus irmãozinhos.

Apetece-me umedecer a garganta. Ponho-me de pé. Insiro as pupilas das mãos na alma da escuridão, que vagueiam nas sombras, aos beijos, até ao alcance da botija. Mas desvanece tal apetência numa salada de pensamentos, memórias, emoções, responsabilidades... Não! Apetece-me agora acalentar os pulmões. Conflagro um cigarro. O último palito do maço. Sustento as nádegas sobre a botija, estendo as pernas para frente, pouso os pés sobre um tronco onde se costuma sentar, encosto numa estaca para acomodar a coluna e divago. 

Meu pai — legítima vítima da proliferação do terrorismo — que beijara a morte na Palma nua de Cabo Delgado, de onde nos refugiamos, invade-me a retina. Minha mãe, que esticou o pernil enquanto ainda éramos pequeninos, o acompanha. Olham para mim como se através das pupilas estivessem a comunicar. Ora, não sei traduzir nem interpretar olhares. E estes são-me cá tão vazios. Tão mortos. Ah! Ambos evaporam. Talvez se saibam perdidos nestas sombras como a fuligem deste cigarro. Isto lembra-me a estrondosa expansão do fogo que deu Cabo ao meu pai consumindo-o naquela Palma Delgada. Ah, descansem os mortos, a vida que ande! Ainda ouço o nome do mulatinho aos gemidos no ressonar da Herizha. Desvio para lá a atenção e vislumbro a barriga em destaque. É deveras uma bela máquina, a minha irmãzinha. Fofocam as esquinas que o coito aconteceu na oficina. Deve tê-la trabalhado engenhosamente, o mecânico — benjamim de uma raça endinheirada, que se acovarda em não assumir essa barriga tão artística. 

Carrego, sobre os ombros do espírito, uma densa dor de cotovelo da amizade entre o meu par de irmãozinhos e o sono. Confesso. São tão leais. Zelosos. Pontuais. Somos cá todos muito magrinhos, com a excepção das excepções da Herizha, que avolumou-se sob o corolário dessa barriguez «quase indesejada», mas, ainda assim, a minha dor de cotovelo consegue ser mais obesa. Épa, entrego-me de inteira alma aos biscates para sustentar essa cabana de três cabeças, que mais cedo do que cedo hão de vir a ser quatro, mas quase nunca satisfaço o apetite. E o tempo não me costuma conceder disponibilidade para ostentar a minha indumentária como faz o mulatinho na via pública. Talvez o tempo esteja apenas poupar-me de alguma possível incursão da vergonha; sei bem que para a visão popular, costumam ser farrapos as roupas em que me enfio. Ah, fodam-se! Roupas. Comida. Mulheres. Opiniões. Eu só quero dormir...

Já nasceram e morreram duas luas desde que cá estou. E o sono persiste em fugir de mim. Corrói-me este tédio. Pesam-me os pêsames. Sei que há-de ceifar-me, algum dia, esta cefaleia. Esgotei as esperanças todas nas tentativas fracassadas de desenrascar a vida nesta magra palhota alugada. Dói-me tudo, inclusive nada. Meus irmãozinhos costumam comer e dormir na mais elevada vontade. Que inveja! Quisera interromper-lhes o sono agorinha para exigir o segredo de tal êxito, mas não devo roubar-lhes o sossego, são apenas criancinhas de nove e quinze aninhos. Ah! Os galos estão já a cantar lá fora. Estão a chamar por mim. Sou um menino adulto. Tenho responsabilidades. Uma família por cuidar. Basta de resmungar. Lamentações é com Jeremias. Pés nos chinelos. Passos à marcha. Está na hora de entregar-me, outra vez mais, aos meus biscates. E eu queria apenas conseguir dormir, porra! Queria poder sonhar ou, pelo menos, ter pesadelos como meus irmãozinhos!

Por Ericsson Sembua

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