1.0 Introdução
Virgília
Ferrão é autora moçambicana com três obras publicadas. Sua primeira obra foi
lançada em 2005, O Romeu é Xingondo e a Julieta Machangana, pela Imprensa
Universitária da UEM, enquanto a sua última, Sina de Aruanda, a que vai merecer
a minha apreciação linguística, em Dezembro de 2021, pela Fundação Fernando
Leite Couto.
Algo
que particulariza os enredos nos livros de Virgília Ferrão é a presença de um relação
desenvolvida numa perspectiva ‘‘romântica’’, i.e, que carrega traços do romantismo.
O
romantismo foi um movimento marcante nos séculos XVIII e XIX. O escritor
romântico é geralmente aquele que ‘‘dá enfase a vida sentimental, tornando-se
intimista e egocêntrico; cultiva o amor e a confidência, ou se dispõe à
renúncia e ao isolamento [...]; o romântico exprime a insatisfação do mundo
contemporâneo: inquietude, tristeza, aspiração vaga ou imprecisa, anseio de
algo melhor do que a realidade’’ (Cândido e Castello, 1991), neste caso, uma
relação sentimental melhor do que a realidade.
Sina
de Aruanda conta-nos uma mesma estória desenvolvida pelos mesmos personagens,
mas em dois momentos históricos distintos. Talvez tenha definido errado. Vale
uma segunda tentativa. A estruturação diegética optada pela autora impõe uma
segunda chance, uma função metalinguística, um isto é, um novo dialecto de como explicá-la. Em Sina de Aruanda, há
alternância entre duas épocas históricas, que estão a 1 século de distância um
do outro, mas cada um deles narrando factos coincidentes, desencadeados por
personagens coincidentes, o que nos faz lembrar a reencarnação.
O
primeiro momento regista eventos que decorrem em finais do século XIX, em que
há denúncia do esclavagismo, do tráfico de humanos e do elevado contraste
socio-racial. Contudo, o século encerra um caso de amor. No início do século
XXI, a denúncia recai sobre a crise ambiental, a protecção do património
cultural, a orfandade e a integração familiar. Entretanto, de novo,
surpreendentemente, o enredo volta a encerrar um caso de amor.
2.0 Critica Linguística
Em
cada artigo, sempre tomo a atenção de mencionar a entidade revisora do livro,
pois sua intervenção influencia fortemente na apresentação linguística da obra.
No livro em pauta, a revisão linguística esteve sob a responsabilidade de
Ricardo Santos, poeta e revisor.
2.1 A sociolinguística de ‘‘Sina de Aruanda’’
A
sociolinguística é uma disciplina que, ao analisar o fenómeno linguagem,
consegue mostrar-nos como a língua representa as estruturas sociais no tempo e
no espaço. Portanto, ela é uma área que toma fundamentalmente em consideração,
para a sua actuação, o contexto: quem fala, quando fala, onde fala, com quem
fala, como fala, por aí em diante.
Diferente
da perspectiva estruturalista, que analisava a língua como sistema, portanto,
invariável, universal; o princípio da sociolinguística assenta-se na variação.
Em
Sina de Aruanda, o narrador teve o cuidado de sincronizar a linguagem de acordo
com as características de cada uma das épocas históricas ali descrita. Nos
eventos que decorrem nos fins do século XIX, sentimos, ao longo da leitura, um
aroma clássico da língua, quase barroco; um aroma que remonta àquele momento
sincrónico particular, assim como representa o colectivo de uma classe
burguesa.
Ora,
o século XIX de Sina de Aruanda é nuclearmente composto por personagens que
governavam o sistema de prazos e os seus subtidos – negros cuja nacionalidade
não é especificada, mas nutro hipóteses de se tratar de negros da região de
Moçambique.
Na
descrição e nos diálogos dos membros dos prazos, é evidente o classicismo e o
tom polido da linguagem. Vejamos:
Regresso
à sala, carregando na mão um pequeno cesto contendo fatias de pão branco
cortadas na perfeição. Enquanto pouso o cesto na mesa, noto a presença de João,
um dos novos sipaios. Ele entra cautelosamente, sob o olhar pasmado do meu
senhorio.
–
Tendes ordens para nunca interromper as refeições, João.
–
Capitão, com a devida permissão. – introduz o sipaio, quase silencionamente –
está la fora o Lorde Sean. Diz ter urgência em lhe falar.
(Ferrão,
2021, p. 21)
Uma
das marcas que se verifica no diálogo acima é a preferência pelo uso da segunda
pessoa do plural (vós), típico da clássica cortesia linguística, também
frequente nos versos bíblicos.
Enquanto
isso, nos eventos que decorrem no início do século XXI, a linguagem passa a adoptar
um novo formato sociolinguístico contemporâneo, com poucas formalidades, diria.
–
Realmente, Daniel de Barros sempre nos surpreendendo – comenta Moysha.
–
Homem odioso esse Daniel – retruca uma voz firme – E esse projecto em Aruanda, nthla, lamentável.
(Ferrão, 2021, p.134)
[…]
–
Mera coincidência? – dentro de mim algo me diz que, mesmo que seja mera coincidência,
aquilo é um pouco bizarro. A Angelina, entretanto, não parece muito preocupada.
Ao contrário, tem um ar divertido.
–
Coincidência o tanas! Não vês? É óbvio! Ela é a reencarnação da dona do prazo!
E queria tirar-me do jogo, impedir-me de chegar aqui.
(Ferrão, 2021, p. 178)
[…]
–
Perdoem, devo estar maluquita. Seja como for, a tatuagem é bem gira! Acho que também
quero!
–
Não, não podes fazer isso contigo, Angelina, uma tatuagem, não! – exalta-se António.
–
Não sabia que o senhor Deus tem preconceito com o estilo das pessoas – comenta
Moysha, cruzando os braços.
(Ferrão, 2021, p. 148)
2.2 Construção frásica
As
sequências frásicas que acompanham o fio condutor da narração e da descrição
recuperam a típica natureza da literatura moçambicana, e das obras a que
prestei, também, um comentário linguístico. Virgília Ferrão desenvolve sua
narração através de frases simples em voz activa, enquanto, de quando em vez,
conecta orações através dos elos sintácticos (conjunções e locuções).
Confiramos a abertura do oitavo capítulo:
Com
lentidão, coloco a chave na fechadura e deixo-a girar de leve, abrindo a porta.
Estou estoirada. A casa lampeja silêncio.
Subo
as escadas de madeira até ao meu quarto. É agradável, com apenas uma cama de
solteiro, uma escrivaninha para os meus trabalhos e uma estante onde guardo a
guitarra e as telas.
(Ferrão,
2021, p. 67)
A
este nível, pode-se adiantar a conclusão segundo a qual a literatura
moçambicana regista a preferência por um padrão frásico constituído por frases
simples em voz activa. Trata-se de estratégia de escrita segura, confortável e
canónica, embora, como vimos em Rhabia de Lucílio Manjate, e outros, surjam
frases complexas que chegam a formar um parágrafo extenso.
2.3 Purismo linguístico?
Como
é comum e totalmente natural, boa parte da literatura moçambicana inscreve na
sua estética o substracto bantu, através de fenómenos lexicológicos, semânticos
e morfo-sintácticos. Essa inscrição geralmente reflecte a presença de um
narrador ou de personagens que detém a língua portuguesa como Língua segundo
(L2), daí se registar transferências da língua materna bantu na L2.
Em
Sina de Aruanda, as línguas do substracto bantu não irrompem à superfície do
texto com muito destaque. O texto em alusão desenvolve-se a partir de uma variante
de português próximo da norma. O narrador é (quase) um purista de língua
portuguesa.
Esbaforida,
Angelina humedece a boca vermelha que mais parece uma rosa no meio de um campo
de girassóis e sacode-me pelos ombros.
–
Porra MC, dá-me uma boa razão, mas mesmo muito boa, para eu não te matar!
–
Sim – respondo devagar, estalando a pastilha elástica – dou-te duas. Número um,
não podes matar a tua melhor amiga; número dois, este é um país democrático,
sou livre de ter opiniões, não sou?
(Ferrão, 2021, p. 57)
Este
excerto ilustra, por exemplo, o cuidado que se teve em realizar a colocação do
pronome clítico segundo os ditames da norma portuguesa, tanto para a próclise quanto
para a ênclise.
No
século passado (XX), o grosso da literatura publicada registava essa
convivência língua portuguesa-línguas
bantu de forma intensa. Foi o que marcou a representação da
moçambicanidade. A partir do início do século XXI para cá, deu-se uma
bifurcação, entre os que resgatam o substracto bantu e os ‘‘puristas’’ – os que
preservam a norma europeia. Este fenómeno, suspeito, pode estar relacionado com
o crescente número de falantes de língua portuguesa como língua materna, tal
como revelam os dados do Instituto Nacional de Estatísticas-INE (2017). A cada
ano que passa, há mais falantes de língua portuguesa como língua materna.
Portanto, a literatura moçambicana pode estar, nada mais nada menos, que a
reflectir aqueles dados. Os novos escritores
falam língua portuguesa como L2 ou L1?
Autor:
Gerson A. S. Pagarache
Gerson Pagarache – Breve Biografia Profissional
Nasceu em Maputo e, imediatamente, viu sua
vida pendular entre Maputo e Beira. É formado em Linguística e Literatura
Moçambicana pela Universidade Eduardo Mondlane, onde foi monitor de Fonética e
Fonologia, em 2017.
É co-fundador de uma empresa que presta
serviços linguísticos: a Cratylus – Serviços Linguísticos, na qual é Director Executivo e Revisor
Linguístico. Em paralelo, Gerson Pagarache desenvolve pesquisas nas áreas de Linguística
Teórico-Descritiva, Sociolinguística e Linguística Aplicada, cujos resultados são
apresentados na Oficina Linguística de Maputo, organizada pelo Centro de
Estudos Africanos da UEM.
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