O amor é um cão dos diabos, mãe!

 

O amor é um cão dos diabos, mãe!
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Ela e o espelho entreolham-se.

Um lápis, guiado pela mão direita (com longas unhas artificiais pintadas a vermelho) percorre com minúcia os rastos das sobrancelhas há bocado devoradas por uma lâmina. Quando ela termina os traçados, esbugalha os olhos como se fizesse um zoom para dentro da sua outra alma projectada no espelho. O seu iPhone reproduz a música ‘’Diaba’’ de Yolanda Boa: (diaba, diaba, diaba… quando tou no teu quarto, amor, eu sou diaba, diaba…)

Ela aplica o pó de arroz na cara. Harmoniza as tonalidades. Fá-lo cautelosa como se tivesse um semblante de vidro. Está já com a pele facial clareada. Metamorfoseada. É uma branca auto-feita, artificial. Despiu-se do negro que a genética lhe atribuiu.

Ela ensopa os lábios com um batom vermelho. Coloca argolas nas orelhas. Camufla o desgrenhado cabelo com uma peruca cor-de-rosa. Distancia-se um pouco do espelho:

     "Veja só, meu espelho. Com estes produtos de bate-chapa e pintura humana algumas palavras como feia, escura... ficaram em desuso. Basta aplicar estas coisas para dar um salto maior que a perna nas grandezas da beleza humana."

Ela movimenta o corpo ao ritmo da música. Alisa a peruca. E continua:

"Estes produtos são capazes de transformar jacarés em borboletas, meu espelho."

Ela trajou shorts pretas (tão curtas que só servem para deixá-la mais nua que quando veio ao mundo), uma blusa preta com um desenho de lábios carnudos e avermelhados quanto os dela.

Ela sai da casa de banho com o celular na mão. Vai à sala. Senta-se numa das cadeiras inertes no compartimento. Coloca o iPhone na mesinha de centro. Da bolsa que jazia no tapete tira um verniz preto. Começa a limar e a pintar as unhas do pé direito.

"Mais uma noite para caçar. Uma noite para estas jantes e faróis brilharem." Diz isto enquanto passeia as mãos pelas nádegas e pelos volumosos peitos.

"Vou limando e colorindo as unhas porque os homens gostam de gatas disfarçadas de pombos. Gostam de mel e de serem picados, mas não querem viver com abelhas. É por isso que deixam as esposas e procuram a nós, as trabalhadoras dos “assuntos”. Eles querem levitar, pisar as nuvens sem sair do chão."

Ela começa a pintar as unhas do pé esquerdo enquanto abana o corpo seguindo a música: (quando tou na tua cama, amor, eu sou diaba… onde quiseres, amor, é só dizer que dou…)

Ouvem-se passos no fundo. Alguém aproxima-se. Ela para de pintar as unhas e silencia a musiquinha. Dirige os seus olhos àquela silhueta adornada por infindáveis camadas de panos castanhos. Levanta-se e pergunta:

"Acabou o sono, mamã?"

A velha senta-se.

"Estou com dores, Maria!"

Ela achega-se à mãe. Faz-lhe festas no cabelo.

"Amanhã te levo ao hospital, mãe!"

"As dores que sinto são inospitalares. Doem-me a alma e o espírito."

"Mãe, de novo com esse assunto?"

"Não é assunto, filha. É dor. Dói-me ver-te a viver assim."

A velha desvia os olhos da filha. Murmura. Olha para o chão e insulta o destino. Lembra-se de quão se sacrificou para conceber e criar a Maria enquanto o marido andava de bar em bar a afogar-se em copos.

"Mãe, estou a roubar? Mato pessoas? Claro que não, apenas estou a phandar a vida!"

"Maria, minha filha, tu mereces uma vida melhor."

"Mãe, nada é melhor que uma mulher que cuida do seu próprio nariz."

"Vejo que não queres mais estudar. Então, devias procurar um marido, Maria. Um homem para te amar."

"Marido? Nem pensar, mãe. Sou marido de mim mesma. Nasci para ser livre. Minha alma não cabe na gaiola de um lar."

"Não fale assim, filha… essas palavras me machucam. Tu mereces o amor de um homem."

"Não, mãe. Não quero. O amor é um cão dos diabos. Veja só como a mamã era tratada pelo papá, porrada todos os dias. Autêntica escravatura. Eu não quero ser pisada por ninguém."

"E um emprego, filha? Ficava-te bem. Até estou a te ver… a sair, bem vestida. A caminhar assim..."

A velha levanta-se, tenta imitar o andar de uma executiva a picar o chão com salto alto, porém, sem sucesso. As dores da idade dominam-lhe os desejos da alma. Volta a sentar-se. As duas cruzam os olhos e gargalham.

"Estou a te ver a gerir uma grande empresa, filha."

"A paz, mãe. Emprego? Até que seria uma boa ideia. Mas sabe qual é o problema?

A velha acena negativamente.

"É que eu não consigo esperar trinta dias para pegar dinheiro. Quero estar sempre com os bolsos a arder. Por isso que prefiro gerir esta empresa que Deus me deu..." Com o dedo indicador direito, aponta o seu órgão sexual. E continua:

"E a minha empresa está sempre a crescer. Já tenho incontáveis clientes. Cada dia surgem outros, mãe. Todos choram para trincar a maçã da Maria Tsokotsa."

"Mas isso é um sofrimento, filha. Com um emprego, passavas a trabalhar de dia e de noite ficavas aqui em casa a descansar. E tens de saber que não serás jovem para sempre e os homens são leões… gostam é de carne fresca!"

"Vejo que mãe ainda não percebeu. Eu sou uma mulher vagalume… existo somente ao anoitecer. Além disso, estou interessada apenas com o presente, que se lixe o futuro com as suas imprevisibilidades…"

A mãe levanta-se, rendida. Retira-se.

O iPhone toca. Maria atende:

"Alô, amizade. Estou muito bem… fogosíssima como sempre. Sim... já estou pronta… já estás aí na avenida?... ok… chego aí, já… já!"

Ela termina de pintar as unhas. Para e pensa por segundos. Volta ao banheiro, pousa diante do espelho.

"O que acha da ideia da velhinha, meu espelho?"

Ela pega o lápis. Delineia os lábios. Depois emite uma longa risada e volta a perguntar ao espelho:

"Preciso do amor de um homem?... Eu?"

Emite um estalido com a língua e responde a si mesma:

"Não preciso. O amor é um cão dos diabos, meu espelho."

Reactiva a sua trilha sonora: (eu sou diaba, diaba, diaba, diaba… na sala, varanda, casa de banho, e que tal, no quintal, no carro…).

Volta a degolar a música. Mete o celular na bolsa, calça as suas Scarpin Zhaceci de salto alto e desaparece.

A velha volta à sala. Ajoelha-se diante da cadeia em que a filha estava sentada. Derrama lágrimas, fecha os olhos, põe-se a orar pela Maria. É o que ela faz toda vez que a filha embrenha-se nos sovacos da noite. Pede a Deus que ajude o seu único rebento a abandonar os caminhos tortuosos. A velha acredita que algum dia a Maria se endireitará.


Por Fernando Absalão Chaúque

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