Entrevista a Carlos da Graça Nhangumele em torno da obra Vinte (e) Vinte (Um)

 

Entrevista a Carlos da Graça Nhangumele em torno da obra Vinte (e) Vinte (Um)
Carlos Nhangumele


Carlos Nhangumele é um jovem escritor moçambicano, professor de profissão; lançou a sua primeira obra em 2021, intitulada Vinte (e) Vinte (Um), uma colecção de ‘‘cronicontos’’ que, segundo o prefaciador, Hélder Muteia, sugere ideias soltas sobre a realidade moçambicana do presente, permitindo uma compreensão das motivações e interrogações prevalecentes.


Quem é Carlos da Graça? (Fernando Chaúque - FC)

Carlos da Graça é um jovem oriundo de uma família humilde, nascido em Inhambane, com a infância dividida entre Chicuque e Maputo. Gosta, não só de escrever e ler, como também de ensinar, bater um bom papo entre amigos, sorvendo qualquer líquido que se encarregue de atiçar os panos de fundo das conversas.

Fomos colegas de faculdade. Começámos, junto do Óscar Fanheiro, a praticar a escrita literária, em 2014. Sete anos depois, entre os vários textos de gaveta, por que se estrear com estes que, segundo a temática, são dos últimos que produziu? Estes ‘‘cronicontos’’ representam o teu repertório literário? (Gerson Pagarache - GP)


Hilário! Nem sei por que te incorporaram neste trabalho jornalístico, ó Pagarache. Mas, indo à tua questão, estes cronicontos são, também, o meu repertório literário, para não dizer parte dele. Entretanto, tornaram-se de estreia, especificamente pela temática e, igualmente, pela sua efemeridade, por se tratarem de crónicas (ou cronicontos?). 


Como surgiu este livro? (FC)





Este livro surge de uma situação inédita, em que, no lugar de publicar rapidinhas linguísticas – um projecto que abracei entre os anos 2020 e 2021, que consistia em pegar nos erros linguísticos do dia-a-dia do contexto moçambicano, explicá-los e corrigí-los de forma breve e cómica, no Facebook – eis que decido, durante o período pandêmico, desafiar-me a publicar, em cada dia, crónicas relativas a esta fase conturbada; de então a sensivelmente seis meses, eu tinha um conjunto de crónicas que já o podia publicar em livro. Por isso, mandei-os para a avaliação e, desta, surgiu esta colectânea. 


Os textos de Vinte (e) Vinte (Um) fogem da ficção e ancoram-se na nossa realidade sincrónica; fogem das obscuridades estilísticas e desvendam o enredo. Acha que a literatura moçambicana precisa ser mais realística, cronista, e menos ficcional ou ‘‘fingidora’’, como diria Fernando Pessoa? (GP)


Relativamente à ficção, fingimento, metáforas e outros conceitos ou recursos, sua presença ou nem por isso, começaria por dizer que são temas candentes e há muito discutidos, principalmente sobre se o texto é ou não literário, mas, a meu ver, a nossa realidade já é um fingimento, já é metáfora de alguma coisa, portanto, nesta colectânea, coibí-me de lapidar estes ornatos e, simplesmente, fui o mais realístico possível, tanto que este livro, desde a data de publicação a esta parte, teve uma boa recepção, principalmente pela acessibilidade da língua, uso de termos ‘‘moçambicanamente’’ trinchados e outros (diria recursos de que me servi para tornar o texto mais original e típico da nossa Pérola de Atum). 


Na mesma senda, qual comentário faz sobre a seguinte declaração do escritor e crítico literário latino-americano, Alejo Carpentier: se for para eu escrever sobre a política, eu escreverei um livro de política; se for para eu escrever sobre uma notícia, eu escreverei um livro jornalístico; se for para escrever sobre um momento histórico, eu escreverei um livro de história, mas se for para eu escrever sobre o imaginário, o verossímil, eu escreverei literatura. (GP)


Penso que o posicionamento de Carpentier é lógico e, quiçá, eu compartilhe da mesma ideia, na medida em que, apesar de marcas do texto literário estarem patentes num texto não literário e vice-versa, cada tipologia (ou género) literário carrega consigo especificidades que o particularizam, salvo a repetição. Entretanto, no acto da concepção de um texto, há caracteres que surgem e, se calhar, colocam, às vezes, em causa os próprios conceitos que até aos dias que correm estão em construção e discussão.


A crónica "Eu Beijei Covid-19" é narrada sob ponto de vista de um morto, vítima de Covid. De onde veio essa ideia? E como foi escrever este texto? (FC)




Como disse numa das questões que me foi formulada nesta entrevista, Vinte (e) Vinte Um é uma colectânea de ‘‘cronicontos’’ que, essencialmente, denuncia algumas peripécias da sociedade moçambicana, dos mais jovens aos mais velhos, no campo, na cidade e no subúrbio, de forma nua e crua, pelo que surgiu a ideia de frisar a morte como uma das consequências do incumprimento do decreto presidencial sobre a luta contra Covid-19. Então, preferi, neste texto, trazer esta voz de um defunto e um desfecho que dá conta de que é importante que nos previnamos, pois a terra não é leve (risos). Quanto à escrita do texto, acho que foi muito emocionante, porque, recordo-me, foi numa altura em que os noticiários reportavam a morte de várias figuras públicas do governo, do mundo das artes e entes-queridos meus. Portanto, quis dar voz a estas entidades neste texto, para que pudessem...


Da Graça, deixas transparecer, várias vezes, expressões e descrições e narrações de momentos bastante ligados a ti, como autor, como cidadão: ora menciona personagens que cursa(ra)m Linguística ora que vivem no Bairro Ferroviário, teu bairro. Vinte (e) Vinte (Um) são estórias contadas por um narrador ou pelo próprio autor? (GP)


Essa é a grande questão e reina até aos dias que correm. Na verdade, há quem pense que, por um dos espaços em que algumas histórias se desenrolam ser Ferroviário, o livro retrata, portanto, o meu dia-a-dia, já que moro neste bairro. Vinte (e) Vinte (Um) tem histórias que decorrem em Massinga: o caso do texto «O (A)provador das Filhas», outras que se desenrolam em Mavalane, outras em Compone, outras, porém, em Ferroviário. O que aconteceu foi: escolhi espaços sobre os quais tenho domínio, para melhor descrever e reforçar a ideia de se tratar de crónicas (ou cronicontos?). Portanto, não seria lícito assumir que o narrador do texto é exactamente o seu autor, apesar de algumas aproximações.


Na escrita, quando é que sofres mais, para iniciar o texto ou para terminá-lo? (FC)


(Risos) Acho que sofro mais em ambas as partes, pois sempre que escrevemos (não me deixes mentir) fazemo-lo, colocando-nos no lugar do leitor, do recensor, embora nem sempre seja conscientemente. Mas é importante frisar que, entre o começar e terminar um texto, é mais trabalhoso terminar, pois o desfecho tem uma função importante na validação de uma história. 


‘‘Subi Mahindra, amor’’ é uma crónica sobre a nossa falta de hábito em relação a essa privação nacional do tempo, ao mesmo tempo que denuncia a incoerência da nossa polícia. Mas há humor no texto, como em outros textos. A pandemia também trouxe momentos de gracejos e comédias ao Carlos? (GP)

Gerson, mais uma vez, pergunto-me por que te juntaste ao Chaúque para esta entrevista. Tu não és de bem, meu amigo (risos). Indo à questão, meu confrade: sim, a pandemia trouxe-me momentos de gracejos. Como já se pode depreender, sem a pandemia da Covid-19, este livro não teria surgido; segundo, durante a pandemia, muitas descobertas houve: artistas, comerciantes, lobistas, entre outros. Aliás, a própria sociedade se reinventou para fazer face a esta doença. Foi e está a ser um período de muito aprendizado, muita introspecção, apesar das perdas e baixas que nos assola(ra)m.


Há neste livro a utilização de expressões do Changana, Ronga, Cithswa... Qual foi o propósito ao deixá-las fazer parte destes textos? (FC)

Uma boa questão, Chaúque. De certa forma, está ligada àquela que, por se fazer menção a Ferroviário, em alguns textos, faz com que se pense que as histórias têm muito a ver com o autor, e não que os narradores sejam oriundos de Ferroviário. Na verdade, o texto procura trazer peripécias de contextos diversos, daí a diversidade linguística subjacente neles. A ideia era mesmo a de tornar o texto moçambicano, não só em termos contextuais como também linguísticos, daí o uso de terminologias de diversas línguas bantu, do calão, da fala dos angolanos (...) 




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