Crítica Linguística 03: ''O Sétimo Juramento'' de Paulina Chiziane

Autor: Gerson A. S. Pagarache

gersonantonio.p@yahoo.com


1.0 Introdução 

Paulina Chiziane venceu, neste ano que nos despede, o Prémio Camões, um ‘‘Nobel da Literatura Lusófona’’. Por isso, dedico a minha terceira Crítica Linguística a ela, autora moçambicana com dezenas de obras publicadas. Seleccionei, para o efeito, a obra ‘‘O Sétimo Juramento’’. O critério de selecção deste livro não me é bem claro, mas sinto que é uma das obras mais lidas da autora. Assim, espero que esta análise linguística seja um protótipo do que as suas outras obras apresentam como singularidade linguística.


‘‘O Sétimo Juramento’’ apresenta-nos (e aqui evitarei, quanto possível, spoiler) uma balança de três pratos: (i) Crença pela tradição africana enraizada, representada pela avó Inês (mas também por Lourenço, amigo de David); (ii) Descrença pela tradição africana enraizada, inicialmente representada por David; (iii) Posição bipolar entre a crença e a descrença pela tradição africana, representada por Vera (esposa de David e neta da avó Inês). E o escape que Paulina constrói para desenrolar o enredo e desencadear as devidas transformações são dois principais problemas: (i) A greve laboral que David, como Director, enfrenta e precisa solucionar e (ii) a psicose do filho Clemente que, também, precisa ser solucionado. E assim vai a estória. A partir de qual daquelas três crenças se vão resolver os problemas?


A presente análise linguística toma como base a edição de Editorial Caminho, SA, publicada em 2000, Lisboa. E não consta da ficha técnica desta edição, o indivíduo que tenha sido o Revisor da obra.


2.0 Crítica Linguística

A partir da segunda metade do seculo XX, a literatura moçambicana começa a ganhar um novo formato. O seu escopo estético e temático passa a caracterizar-se pela busca por uma identidade própria e genuinamente moçambicana (Matusse, 1988). Desta forma, surgem obras cujas linguagens caracterizam-se pela reformulação da norma do português-padrão, numa tentativa de representar marcas da oralidade moçambicana.


No entanto, em ‘‘O Sétimo Juramento’’, a variante adoptada de língua portuguesa não se iguala àquela transgressão mencionada, à oralidade moçambicana. Pelo contrário, a linguagem, nesta obra de Paulina, é caracterizada pela obediência assídua da variante europeia. O narrador é altamente competente no uso da norma. Ele não comete ‘‘erros’’ de ortografia, tão pouco de gramática (salvo algumas alternâncias no uso das formas de tratamento com o imperativo).


A obra vai mais longe, quando empresta aos personagens falas que reflectem um domínio exponencial da língua portuguesa, inclusive, a personagens que, pela sua idade ou repertório, são suspeitos que falem dessa maneira. O filho de Vera, Clemente, é suspostamente um menor, mesmo assim, proferiu a seguinte fala:


Nos dias de trovoada, há sempre uma nuvem que se destaca. Um conjunto de mancha em remoinho. Uma gota de água que vai crescendo, crescendo até ganhar o tamanho de um balão. Dentro do balão há algo que se move como peixinho.


Ainda não disse tudo, mãe. No pesadelo de há pouco, vi uma menina feliz voando no espaço. Vem um raio e corta-lhe as mãos que caem sobre o solo, enquanto ela continua a navegar no espaço, e depois vai sangrando, caindo, morrendo. Saltei para salvá-la, mas já era tarde de mais.

                                                                             (Chiziane, 2000: 22)


Como se observa, embora Clemente seja um personagem localizado no universo africano, a sua perfomane linguística evidencia uma competência magistral de língua portuguesa.


A preferência por frases simples, com muito pouca coordenação e subordinação, é também uma marca linguística nesta obra. Este tipo de construção oferece um ritmo de leitura muito suave e atenua o processo de compreensão da obra. Vejamos:


David não resiste às batidas dos espíritos. Sente um formigueiro a atacar-lhe o cérebro. Ajoelha-se e lança gritos arrepiantes. Levanta-se e gira a cabeça em roda para afastar o formigueiro. Dança. Sente que dos pés lhe nascem pernas, e dos braços asas longas. Flutua no espaço sem a influência da gravidade.

                                                                                       (Chiziane, 2000: 104)


De facto, a preferência pela utilização mínima dos processos sintácticos de coordenação e subordinação é um registo da clássica prosa moçambicana – Paulina Chiziane, Ungulani Ba Kha Kossa, Mia Couto, Suleiman Cassamo – mas também se estende pela nova literatura – Lucílio Manjate, Leonardo Jossai, Carlos Nhangumele, entre os demais.


Em Aguiar e Silva (2004) são desenvolvidos os conceitos de Sistema Modelizante Primário e Sistema Modelizante Secundário. O primeiro seria um plano no qual a língua é usada de forma ‘‘natural’’, espontânea; enquanto que o segundo seria um plano no qual a língua se constitui, se organiza e se ornamenta a partir do primeiro.


Neste sentido, mais do que atribuir aos personagens falas com ‘‘bom português’’, Chiziane, uma vez e outra, concede aos seus personagens falas já ornamentadas, com tempero poético, que se enquadram num nível ‘‘superior’’ do uso da língua, o sistema modelizante secundário. Leia-se, abaixo, a fala da avó Inês:


Não temas nunca um homem. Nós, as mulheres, é que damos luz ao mundo. Todo o homem ganha existência no ventre de uma mulher. Somos poderosas. Transformamos toda a força em nada e toda a tensão em calma e sossego. Somos a água que arrefece o mais ardente dos fogos. Homem e mulher são duas pedras onde Deus tem o seu suporte. Homem é filho, homem é companheiro. Respeita-o. Não o temas nunca.

                                                                                       (Chiziane, 2000: 57)


Na obra em análise, Paulina retoma um debate remoto, com ecos fortes na cultura africana, embora se vá enfraquecendo nos dias actuais. Trata-se do debate sobre a nomeação. Na obra Crátilo, Platão regista um debate aceso entre Hermógenes e Crátilo. Enquanto este acredita haver uma associação lógica e natural entre o nome e o nomeado, aquele pensa que entre o termo e a coisa apenas existe uma ligação convencional, puramente arbitrária. Apresentei, na Oficina Linguística de Maputo, edição de 2018, um artigo que discute este debate e outros, intitulado Língua e Realidade: Entre o Naturalismo e o Convencionalismo. As conclusões a que cheguei podem ser apreciadas, solicitando, para tal, o artigo através do correio: gersonantonio.p@yahoo.com.


Em ‘‘O Sétimo Juramento’’, discute-se o papel dos nomes como a ponte entre os vivos e os mortos. Morre o corpo. Fica o nome. E com o nome, permanece o repertório e a obra de um indivíduo, de uma família, de uma grande nação. Por isso, alerta-se cautela na selecção de um nome.


A vito i mpondo. Nome é libra. É assim como começa o capítulo XIII. Há selecção do nome para atribuição de personalidade, religião, felicidade ou amargura. Maria das Dores. Jorge Guerra. António Bravo. Nguenha (crocodilo), Chivite (angustia), Thandi (Querida), Ngungunhane (destruidor), Mudungazi (provocador).

 

3.0 Conclusões

A escrita de Paulina Chiziane possui, muitas vezes, um ritmo e uma cadência próprios da poesia. Nela vem à tona, acima de tudo, o enredo, a estória. É aqui onde se centra a sua arte. A língua é só um meio para um fim.


Romancista. Não. Contadora de histórias. Sim. De facto. Há que ter cautela! Nem tudo o que chamamos de romance é, certamente, romance. Pertencemos a uma tradição de histórias pequenas à volta da fogueira. Contos. Poesia. Simplesmente histórias.


Gerson Pagarache – Breve Biografia Profissional

Nasceu em Maputo e, imediatamente, viu sua vida pendular entre Maputo e Beira. É formado em Linguística e Literatura Moçambicana pela Universidade Eduardo Mondlane, onde foi monitor de Fonética e Fonologia, em 2017.


É co-fundador de uma empresa que presta serviços linguísticos: a Cratylus Moçambique, na qual é Director Executivo e Revisor Linguístico. Em paralelo, Gerson Pagarache é escritor e é pesquisador na Oficina Linguística de Maputo, organizada pelo Centro de Estudos Africanos da UEM.




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