Posfácio ao livro de estreia AS CINCO PRAGAS DO DIVÓRCIO de Fernando Parruque Por Matos Matosse*

 

Posfácio ao livro de estreia AS CINCO PRAGAS DO DIVÓRCIO de Fernando Parruque   Por Matos Matosse*

           

Em busca de essências da vida


“Não se preocupe em entender,

 viver ultrapassa qualquer entendimento”.


Clarice Lispector (1920 – 1977), 

escritora e jornalista ucraniana 


Fernando Parruque como, assim, desejou identificar-se, neste livro, por sinal, o que marca a sua estreia  ̶ , abandonando o seu pseudónimo de Nhondó (?) ̶ , uma estreia na qual se desafia em prosa, já está na arte literária, há mais de 25 anos. Não me era esperado, muito menos, cogitar que tal desvio estratégico (?) houvesse, pois, Fernando Parruque tem a sua iniciática literária, em poesia. Uma poesia lírica e explora o soneto. Chegou a ver seus textos poéticos publicados numa Antologia Poética, Sonhos, Caminhos e Lutas, (2015), com 23 poetas do Movimento Literário Juvenil – MOLIJU; outros propostos para um concurso literário sob auspícios da Associação dos Escritores Moçambicanos, AEMO, já, lá, vão uns bons pedaços de tempo. 

A Literatura moçambicana, mesmo a mundial, já testemunharam e, ainda, têm testemunhado [aqui, evito dizer “muitos”, por razões óbvias…] escritores que usam [entre aspas] a poesia como porta de entrada para a sua actividade literária e, depois, cultivarem a prosa.  ̶ Não querendo dizer que não aconteça o inverso. ̶ Contudo, isto não implica que a poesia fica abandonada à orfandade, não! 

A musicalidade que sentimos ao ler um texto narrativo, a cadência rítmica, a sonoridade que nos encanta, nos embala e nos levita; a escolha rigorosa de palavras, como um artista plástico seleciona cores para sua tela, os recursos estilísticos, isto e mais é a continuidade da poesia num texto narrativo, e torna-o belo, artístico.

Sinto-me, bastante, honrado pelo facto de Fernando Parruque ter escolhido a mim, talvez, dentre os melhores amigos, escritores, poetas e críticos literários que fazem vasto leque na sua vida, para que fosse eu um dos primeiros leitores do seu livro, As Cinco Pragas do Divórcio.  Já estava tudo terminado, acontece, porém, que com máxima prudência que o caracteriza, tivesse de pontuá-lo, finalmente(!), tal intenção não lhe cabia fazê-lo. Dai, preferiu que o livro, outros olhos o apreciassem, cautelosa e criticamente. Foi com este propósito, num misto de rara sorte, diga-se, que se me depara, casualmente, e propõe que eu fosse o primeiro leitor. Ah, este ensejo que o autor me dá, enche-me de júbilo. 

Fernando Parruque


Ao revirar…, revirar o livro, página a página, percorrendo-o com maior acutilância de que me revisto, quando faço uma crítica literária, eis que lhe sugiro, telefonicamente, ̶  um posfácio, Um posfácio?  ̶  indaga-me, estupefato.  ̶ Sim, Nhondó, um posfácio! E eu escrevê-lo-ia. Ideia não contestada, pelo contrário, recebida com rasgos leves de sorrisos profundos, revelando a satisfação que lhe consumia! 

As Cinco Pragas do Divórcio é título do livro que Fernando Parruque, hoje, coloca nas nossas mãos. É do género narrativo. É uma prosa.

[Aqui, peço, por emprestado, à Dra. Sara Jona Laisse, docente universitária, crítica literária e grande estudiosa da Literatura moçambicana, o uso do seguinte termo: género hibrido. Isso mesmo, género hibrido, mas, só lá para adiante, o leitor irá compreender por que razão o trago para esta abordagem literária. Talvez eu não o use com tal rigor que a Dra. Sara Jona Laisse o emprega, em seu mais recente estudo sobre a Literatura moçambicana: rastos e rostos da última década, 2010-2020.]  

Neste livro pode encontrar-se, para além do conto, obviamente, a crónica, textos expositivo-argumentativos e os de reflexão, com base em extractos da Bíblia Sagrada, nos quais o autor expressa sua opinião sobre uma determinada situação de índole social; a título de exemplo: A Virgem, págs.: 121 a 129; As cenas que se passam no GYM, págs.:  231 e 240; Melhor estar solteiro (a), pior é divorciar! págs.: 257 a 269; Quem achará uma mulher virtuosa?, págs.: 251 a 255.

Esta estrutura, que o autor adoptou e apresenta-nos, é uma prática entre escultores da palavra?  ̶ Dir-lhe-ei, claramente, que não! Conquanto, não me quero desviar do durâmen do posfácio, para cuidar de opções, de preferências que um autor devesse abraçar, na liberdade que lhe coube.  É um estilo que Parruque adoptou, pura e, simplesmente.

Fernando Parruque aborda, neste livro, vários temas, facilmente, identificados, através de associação de motivos, isto é, conjunto de palavras que, fazendo parte dos contos, romances, nos remetem à identificação da temática. Recorde-se que, na poesia, para a identificação de tema, recorre-se a um outro conjunto de palavras: isotopias, constituindo um plano isotópico. 

 Os temas, muitas vezes, não são escolhidos à toa. Dependem da finalidade que se quer dar às histórias, do alcance que o autor pretende atingir. Das suas intenções. É isto que vai prender o leitor ao livro.

 A questão do belo artístico deve ser chamada sempre na produção de um texto literário. E como diz o escritor chileno, Luís Sepúlveda (1949 - Abril de 2020), “Somos capazes de criar beleza no que escrevemos”.

O belo não pode existir sem o bom: nada mais diverso, e nada mais inseparável. 

Isto parece chocar-se com o posicionamento assumido por Alexandre Herculano que insiste na «diferença do bom e do belo», admitindo que é desinteressado o sentimento deste último, o qual, como sentimento, não se dilui num espaço, meramente, subjectivo porque, como nos avisa, ele representa um equilíbrio ou uma unidade que se admite existir no relacionamento das faculdades, de tal modo que essa unidade se torna «subjectivamente absoluta».

 Um livro – como uma obra de arte literária – deve causar ao leitor algum interesse. Deve existir nele o bom. Estou convencido de que As Cinco Pragas do Divórcio causa esse impacto ao leitor. Pode modificar comportamento(s).

Mas isto não surge do nada. [Retorno ao ponto anterior.] O escritor deve saber desenhar suas histórias, para que estas cativem o leitor; deve saber conduzi-las e; deve saber vivê-las. Fernando Parruque conseguiu isto, neste livro. Ele, sem exagero, ara  ̶ no bom propósito do termo ̶ , as histórias que nos conta e, visivelmente, revelando-se-nos um narrador participante, aparecendo, às vezes, como auto-diegético e cria personagens modeladas, dinâmicas, dotadas de densidade psicológica. Conhece suas personagens. Sabe o que elas pensam e sentem. Sabe como cada uma reage a determinada situação. Aliás, como narrador participante, Parruque consegue expressar, sem dificuldades, os vários sentimentos que as personagens vão enfrentando ao longo das suas acções. Cria o dialogo interior. Mas também, em alguns textos, apresenta-se-nos como narrador não participante.

Como se sabe, quando um escritor deposita sua obra literária nas mãos de um leitor, começa, desde aí, um diálogo entre os dois [autor e leitor]. Vamos reter um aspecto:  este diálogo é, intrinsecamente, continuado, quando o leitor for capaz de “peneirar” e de penetrar ou mergulhar-se nos textos, para buscar neles, não só, um simples exercício de prazer, de “iludir” o seu passatempo, de espantar o ócio, mas, sobretudo de compreender o que o autor quer dizer, o ensinamento, (…) e de se reencontrar nesses mesmos textos. Aqui, o reencontro não é, necessariamente, que seja comigo mesmo (eu, o leitor), mas, filosoficamente, deve envolver toda a pretensão de busca de essências da vida. Deve transformar alguma coisa em mim, enquanto leitor e, outrossim, como uma pessoa que, infinitamente, estou em busca de perfeição. Do bem. Do discernimento do bem e do mal. A fazer escolhas orientadas pela razão.  Isso é o efeito positivo que um livro, provavelmente, cause ao leitor. 

Concentrando-me, exclusivamente, à narrativa, importa dizer que, segundo Tzvetan Todorov, uma obra literária tem dois aspectos: ela é, ao mesmo tempo, uma história e um discurso. Ela é história, no sentido em que evoca uma certa realidade, acontecimentos que teriam ocorrido, personagens que, deste ponto de vista, se confundem com os da vida real. Esta mesma história poderia ter-nos sido relatada por outros meios, porém, a obra é, ao mesmo tempo, discurso: existe um narrador que relata a história; há, diante dele, um leitor que a percebe. Neste nível, não são os acontecimentos relatados que contam, mas a maneira pela qual o narrador nos faz conhecê-los. E o Discurso, na visão de Roland Barthes, é, originariamente, a acção de correr para aqui e para ali, são as idas e vindas, as «tarefas», as «intrigas».

Parruque leva-nos a (re)viver estas histórias que nos relata, neste livro, através de uso de marcadores identitários onomásticos e temáticos (lembre-se que já me referi a este último), a cosmogonia do Homem, para, daí, como ponto de partida, conhecendo sua origem, sua identidade, poder respeitar o seu criador – Deus, e respeitar o outro, nesta relação que se estabelece – com o outro –, horizontalmente. Aqui, é-nos trazida a questão da Ética, da Moral. A questão axiológica. 

É à volta desta teia que toda a temática que o autor nos sugere ganha a sua valorosidade. Ganha interesse. Ímpeto, no seu sentido figurado. 

Na temática de intervenção social, o autor debruça-se sobre a infidelidade, o adultério, o desrespeito, o incesto, a violência doméstica, a burla, o roubo, etc., etc., etc.

Todavia, não é, apenas, a temática de intervenção social que se pode encontrar no livro de Parruque. A propósito, por falar em temática, Parruque aborda a mesma temática que a dos contos, sobretudo, nos textos de reflexão, tendo como base de sustentação as Escrituras Sagradas como se procurasse buscar nestas, algum apoio. Contudo, isto não deve ser entendido como se o autor tivesse alguma incerteza, na abordagem dos mesmos, pelo contrário, como um forte suporte buscado na Bíblia. 

Em “Viúva de beleza abundante”, págs.: 99 a 107, Parruque explora, inteligentemente, a crítica social, recorrendo ao cruzamento temático: amor vs morte, uma morte que, à sua volta, nasce o mistério; tal mistério que envolve a morte de Manuelito. Uma morte que ocorre na casa de uma amante vizinha, a viúva Katidja do seu primeiro marido, Makelane, que teve a morte num acidente de viação, e, agora, a do Manuelito. Esta morte de Manuelito gera muita intriga, muita confusão, dá azo a variadíssimas especulações e, as vozes, se exaltam, quando a Safira, a esposa de Manuelito, esmaece. 

Aqui, nota-se, claramente, que  ̶ é nessa tentativa de trazer o Homem à regra, aos princípios  ̶ Parruque vai buscar tal sustento. O cajado.

Parruque traz este cruzamento temático: amor vs morte, num contraste, a propósito. Duas palavras opostas. Diria um amigo: com «sabores» e sentido diferentes. Ele parte, primeiro, de uma relação entre duas pessoas que se amam – [amor], mas, que, dadas as vicissitudes da vida, esse amor transforma-se em angústia, sofrimento e acaba em  ̶ [morte].  

Uma vez mais, o autor, tal como o faz [e muito bem, explorando as técnicas da narrativa] no texto cujo título dá o nome ao livro, págs.: 161 a 182, leva o leitor a descobrir as cinco pragas que levaram o casal, o tio Betinho e a tia Balbina, ao divórcio.

Em “A Mafalda vai ser purificada no kutchinga”, pág.: 61 a 67, Parruque critica, severamente, a prática de cerimónias de kutchinga. Esta realidade que, infelizmente, ainda é prática nas nossas sociedades. A mulher é istificada; coisificada. É tida como objecto. Amputa-se-lhe a sua dignidade e, em contrapartida, glorifica-se a empáfia dos “homens”. 

O As Cinco Pragas do Divórcio tem como epicentro o enaltecimento da mulher. Para Parruque, a mulher assume um papel primordial na edificação de uma sociedade. Um aspecto fundamental, toda esta admiração pela mulher é-lhe inspirado pela sua mãe:

«Minha mãe, como mulher, respondia a todas exigências do dia-a-dia dentro e fora do tempo, dando a sua força e seu forte contributo nas suas acções, prestando seu dever e direito para o crescimento e desenvolvimento das boas práticas fora e dentro da igreja, dentro e fora da casa, (…)»., A Guerra de Relacionamentos entre Casais, págs.: 271 a 276.

É esta mulher, sua mãe que, segundo o autor, sempre procurou transmitir boa educação não só para si e seus irmãos, mas também, para muitas pessoas,  ̶ como foi dito na citação acima. É, enfim, na figura de uma mulher em que se conflitua a ética “parruqueana” e os valores que foram olvidados (?), nos dias de hoje. 

Parruque debate-se com esta dicotomia: mundo bem-comportado vs mundo mal-comportado. 

No fundo, aquilo que são as pragas do divórcio vão encontrar-se em quase todos os textos. Basta, para tal, perceber-se que as pragas são aquilo que desvia alguém do bom “caminho”, das regras de boa conduta. O autor não as limita, exclusivamente, no texto que titula o livro. As pragas, por assim dizer, serão cinco ou mais.  Irá depender do leitor. Parruque provoca-nos com as cinco.

Tal como na abordagem anterior, Parruque arremessa-nos a uma outra conflitualidade, mas, igualmente, ao contraste, em textos como: Não dê toda sua força às mulheres, págs.: 241 a 249, e, em Madrasta, págs.: 131 a 138. Qual será a sua real intensão?

Parruque apresenta-nos uma narrativa, na qual a fronteira entre a realidade e a ficção é bastante ténue.  É difícil separar estas duas dimensões.  ̶ Mas por que isto? É bastante simples. O recurso aos espaços e às realidades conhecidas do leitor será, provavelmente, a razão que está por de trás disto. E qualquer proximidade um do outro será uma mera verosimilhança. 

Outro aspecto que se pode explorar n’As Cinco Pragas do Divórcio é a maneira como o autor narra as suas histórias, uma narração que cai como um desfazer-se, leve e animado, do rolo de uma linha entre as mãos macias de uma criança; a simplicidade no emprego da linguagem; uma linguagem sem muitas metáforas; uma maneira de escrever que permite que o leitor viaje pelos textos sem sequer lhe causar dor; fadiga. Náusea.

Talvez em jeito de desenlace!...

Fernando Parruque optou pela narrativa aberta que consiste em deixar algumas histórias sem desfecho; isto é, uma história aberta, obrigando o leitor a dar a sua conclusão. Achei isto interessante. 

Literalmente, microscopiando os textos do escritor e poeta Fernando Parruque, – [não me é fácil falar de Fernando Parruque, escritor, sem me referir a Nhondó, poeta, a mesma pessoa] – descobre-se as escolas que fizeram este escritor, este poeta, o lapidador do verbo que, hoje, é. Nesse raciocínio, as escolas são os escritores ou poetas que Parruque leu-os e tê-lo-ão inspirado, de alguma forma. Dentre eles, encontramos: Paulina Chiziane, Rui de Noronha, Mia Couto, José Craveirinha, Ungulani Ba Ka Khosa; Luís de Camões, Eça de Queirós, Fernando Pessoa, José Saramago, Mac e Bill e Joseph Prince. 

Não basta que alguém leia certos autores para os considerar já suas escolas.  Exige-se muito mais do que ser um simples leitor. Um modesto apreciador da Literatura.

É certo que, Fernando Parruque não se agarra, exageradamente, a eles. Abandona-os, delicadamente, e adopta o seu próprio estilo. O seu próprio traço. A sua peculiaridade. Ganha suas próprias asas e enceta voo. Belíssimo voo!!!...

A narrativa de Fernando Parruque é, sem dúvida, pura, fácil e amável. 

Fernando Parruque consegue trazer-nos estas duas ideias: a beleza e o bem. A beleza, a própria construção que respeita a princípios da teoria literária e, o bem, a moral. A finalidade. 

Esta forma, pela qual o autor desenvolve seus contos, pode levar-lhe, claro, se quiser, a explorar, com facilidade, outro género: o romance. 

Mais obras venham! Belas obras! 

Traga-nos a poesia. Os sonetos que já estão concluídos! Este é meu anelo, pessoalmente!

Parabéns, confrade! Deus lhe dê bênçãos!


Ferroviário, aos 17 de Abril de 2020

*Professor, escritor e ensaísta literário



*Dados sobre o livro

Titulo: As Cinco Pragas do Divorcio

Autor: Fernando Parruque

Registo: Nº DL/BNM/560/2020, ISBN: 978-989-54846-0-7

Tiragem: 500 exemplares, 

Editora: Tipografia e Editora Prelo Clássico, Lda. 

Data da publicação: Dia 27 de Novembro de 2020, no auditório da Universidade Joaquim Chissano.


   

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