''As memórias da avó Maria'' — Gaspar A. T. Pagarache

 O dia ainda era um menino em fase de crescimento. Os pássaros ainda cantavam as belas músicas de embalar os sonhos. Os únicos seres livres, no planeta, são os pássaros, dizia a minha Avó Maria, sentada no quintal, contemplando o mundo com ternura. Ela se espreguiçava tanto que na sua cadeira deixava as marcas da antiguidade. Vinha-me à mente que ela nascera para cumprir o destino dos preguiçosos. Decido, então, trocar algumas falas com ela. Avanço audaz e com um sorriso improvisado pontapeio:

— Avó, porque te sentas tanto aqui no quintal?

— É para questionar a morte quando a mim chegar.

— Questionar? Como assim, avó?

— Questionar, meu neto, não conhece essa palavra? É para saber porque é que ela me quer levar, se eu não faço nada demais. Não terei utilidade para ela.

Áh, percebo, avó. Mas, avó, podias, pelo menos, andar por aí, de um lado para o outro, só para não dar preguiça às pernas.

— Meu neto! — Sorri ela, sarcástica. — Já não tenho pernas suficiente para deambular por aí.

— Hii, vovó, você? Está bem. Tenho uma ideia, vovó?

— Não gosto de ideias. Foi assim que fomos escravizados, por causa de ideias. Mas diga, meu neto.

— Vamos ver televisão, vovó!

— Televisão?

— Sim, televisão.

— Não quero. A televisão, meu neto, é uma outra forma que os brancos encontraram para nos lembrar deles, do antigamente, dos tempos em que nós éramos seus escravos. Então, meu filho, a televisão, para mim, é uma outra forma de escravidão, mas já modernizada. Entendes-me, nzukulu?

A avó não quer amolecer a conversa. Ainda anda perturbada com o passado. Antigamente, não havia descanso. Era nas corridas que se devia encontrar um descanso. No seu tempo, as balas caiam do céu mais do que a própria chuva. Hoje, para passar o tempo, ajusta as nádegas na cadeira de palha. E contempla, com um olhar enternecedor, a beleza da natureza. A morte não a assusta. Diz ela que a morte é uma outra forma de alcançar a felicidade. E prefere esperar pela morte sentada, porque para ela a morte sempre demorou chegar.

 

Gaspar A. T. Pagarache, 2021


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