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Dodó, devido ao “Recolher Obrigatório” anunciado pelo Presidente da República, foi obrigado a sair uma hora depois da hora habitual, não para cumprir com o Decreto, mas, para poder selar o habitual ritual, já que sexta-feira é o dia do homem na Pérola do Atum e noutros quadrantes do mundo. Saiu às dezassete e poucos, na companhia dos seus ajudantes.
Da oficina foram directo à casa da Dona Zaidinha, uma vendedeira de álcool que, mesmo em meio à pandemia, clandestinamente, exercia a sua actividade às escondidas na sua casa. Barraca encerrada devido ao Decreto do Conselho de Ministros, por causa da pandemia da Covid-19 que há um ano e alguns meses ainda teimava em ceifar vidas em todo o mundo, mas o quintal, mais espaçoso que a sua barraca, tomava as rédeas. Era assim naquele tempo, reinava um e único léxico, REINVENÇÃO. Todos os profissionais, dos mais formais aos informais, sempre se diziam estar a se reinventar.
Ah, se a reinvenção tinha em vista arrecadar algum para satisfazer as suas necessidades, que faria(m) Dodó e os seus ajudantes para satisfazer a sua necessidade básica e natural, numa sexta-feira quanto aquela? Que faria a tia Zaidinha que dependia da barraca e do álcool para pôr pão na mesa?
Dodó, mecânico de profissão, alto, escuro, bem musculoso, porém humilde e muito acolhedor, já tinha prometido aos seus dois ajudantes uma caixa de uma cerveja muito consumida no país, cujo nome só contempla um número e uma letra, em homenagem a Mac-Mahon.
— Dona Zazá?!
— Sim?!
— Pode abrir?
— Quem é?
— O próprio. Mano Dodó. Bonito de noite, feio de dia!
— Oh, já estou a abrir. — Dona Zaidinha era muito prudente. Só abria o portão e vendia bebida a conhecidos, sob o risco de ser recolhida pela polícia. Ademais, aquele era o discurso inicial de praxe do Dodó quando chegasse à casa da Dona Zaidinha.
O portão é aberto. Como que uma cortina a se abrir para um show de cinema, o horizonte de Dodó e dos seus ajudantes compunha-se de um circuito bem organizado. Embora a actividade de consumo de álcool, claro, sem máscara, acontecia no quintal, Dona Zaidinha fez questão de colocar cadeiras, observando o distanciamento físico entre os bebentes de cervejas, cidras e secas, dos quais homens e mulheres. Ali, a polícia prenderia a proprietária do estabelecimento, aliás, a dona de casa por venda de álcool e não uso da máscara por parte dos seus visitantes. Ou clientes? Mas, por aglomeração, não. Pelo sim, pelo não, ali se consumia muita bebida. Diga-se que, muitas vezes, Dona Zaidinha fora surpreendida por polícias a vender clandestinamente bebidas alcoólicas, porém, sem precisar ser conduzida à esquadra, continuava com a sua clandestina actividade. Os polícias, todavia, também o faziam: iam e voltavam, de tempos em tempos, e de lá saíam como entravam. Ah, nos bolsos, não sabemos. Só não saíam com a Dona Zazá.
— Como está, minha mãe?
— Estou bem, mano Dodó. Vão querer o quê? Estão aí as cadeiras.
— O de sempre. Para mim, Heineken, para esses dois, Mac-Mahon. Se não acabarem uma caixa, não saio daqui...
— Mano Dodó, Mahindra!
— Sei. Mahindra sabe o que faz, tia Zazá também. Aqui, uma mão lava a outra.
— Wena Dodó, wena! (Dodó, tu!).
— Deixemos disso, manda vir...
Cada um tomou o seu assento e a saga começou. Consumiu-se à torta e à direita. Enquanto isso, pessoas entravam e saíam. Claro, uns de jeito diferente como entravam, outros, do mesmo jeito, mas, carregando sacos plásticos e/ou cestos, pastas de costas para evitarem flagrantes e serem recolhidos às celas, por desobedecerem ao Decreto.
Já eram vinte horas, as pessoas tendiam a se diminuir e só persistiam os que moravam por ali em Compone. Enquanto isso, a conversa ia fluindo, o distanciamento ia sendo esquecido e o Decreto desobedecido. O barulho, instado pela quantidade de álcool ingerido, só aumentava e, nisso, intervinha Dona Zaidinha:
— Meus filhos, vamos lá nos ajudar. Cada um aqui sabe que estamos aqui clandestinamente. Se Mahindra chegar aqui, estamos todos recolhidos e eu, mal.
— É verdade. Tem razão, tia Zazá. A bzala drahipeza (A bebida está a nos pesar). — rematava em Ronga um dos consumidores que se tornava lúcido naquele momento, percebendo a gravidade da coisa.
— Mestre, faltam quase cinquenta minutos para vinte e uma horas. Temos que ir.
— Vocês ficam ali na esquina. Vamos sair às vinte e cinquenta. Em dez minutos estão em casa.
— Mas mestre, e tu?
— Deixem comigo. Não se preocupem. Dez minutos são suficientes para eu sair daqui para Ferroviário.
— He... Dodó, já que és bonito de noite e feio de dia, não acertaste uma pita, tu?, a ponto de nem te preocupares com a polícia?
— Não, Dona Zazá. Quero brincar com os meus putos apenas. Sabes que não sou disso.
— E hoje não estás de carro!
— Sim, está com a tua nora. Ela ia ver os pais hoje. Não quis marcar para fim-de-semana, porque sabe que no fim-de-semana matreco muito.
Não tardou, depois de uma rodada, Dona Zazá começou a diminuir o elenco. Só ficaram os que ladeavam aquela casa, vizinhos da dona Zazá.
Dodó, já na paragem, consegue um chapa que chamava Xikheleni. Chegado lá, começa a caminhar e, quase à Ponte Ferroviária, é parado pela polícia que se fazia transportar num Mahindra. Trazia na mão um saco plástico, preto, com uma embalagem de Heineken aberta. Noutra mão, uma garrafa, a qual ia dando, com tanta ousadia, goles instantâneos.
— Alto aí!
Dodó pára, todo calmo e obediente. Saúda-os e é logo respondido por uma questão:
— O senhor é moçambicano?
— Sim.
— Não é possível, não conhece o Decreto? Nunca ouviu falar de “Recolher Obrigatório”?
— De onde vem aonde vai? — Aqui, os inquiridores já eram muitos. Três no alcatrão, todos armados, uns de macarov, outros de AKM47 e outros na cabine do Mahindra a fitarem carros que se viam pelos faróis acesos no fundo da estrada.
— Venho da oficina, vou para casa.
— Chefe, esse plástico é de Heinekens. Esse está bem dado.
— Dado não estou. É Heineken, sim. Vou para casa. Queria tomar lá, mas não aguentei. Sede.
— Chi... Esse daí é louco. Sobe aqui. Vamos tratar na esquadra.
A estrada estava limpa, só se via um e outro carro a circular. Dodó sobe no Mahindra e, antes disso, termina a garrafa de Heineken que bebia e tira outra do plástico, já no carro.
— Mas tu és abusado! — sentenciava um dos agentes que o ladeava.
— Nada! Dá no mesmo. Já pequei. Quem ainda me vai prender com autoridades do meu lado? — Vulipendiava em XiChangana.
Minutos depois, quase à sua rua principal, ouvem-se vozes e alguma música alta. Os agentes descem todos, incluindo o comandante da viatura, excepto um. Enquanto se interrogava e (a)prendiam pessoas e bens, Dodó desce do Mahindra e pega no seu plástico de Heineken. O agente, sem se mover, questiona a Dodó aonde ia. Este responde:
— Djon, não vou fugir. Mas és homem?
— Sim, por quê?
— Pega estes duzentos. Deixa-me ir. Minha rua é aquela.
— Ha... Chefe, é pouco isso. Somos muitos.
— Muitos são os que vão sair daquela casa. Preferes dividir estes duzentos com o teu boss do que levar só p'ra ti e me deixares ir?
— Mas tens razão. Está bem, baza lá. — Enquanto isso, o agente segura no plástico e comanda a ida do Dodó.
— Mas chefe?! — Dodó tentava suscitar recuperação da sua bebida.
— Agora decides tu.
Sem mais papo, Dodó deixa o plástico com quatro Heinekens com o agente e vai, terminando os mililitros que lhe restavam na garrafa que trazia noutra mão.
Chegado a casa, a esposa pergunta como chegou a casa, por que não respondeu às suas mensagens. Dodó, sem muitos rodeios e bem sucinto, responde:
— Não dava para responder. Subi Mahindra, amor.
***
Carlos da Graça Nhangumele, natural de Chicuque, Inhambane, nasceu a 29 de Março de 1994, é formado em Literatura, pela Universidade Eduardo Mondlane (2017); frequentava a sua segunda licenciatura em Ensino de Português (2018-2020) na Universidade Pedagógica de Maputo, interrompida pelo imperativo do seu ofício. Actualmente, é Mestrando em Ensino de Português - Língua Segunda, pela UEM. Professor de profissão, é, igualmente, Revisor Linguístico. Língua Portuguesa, Técnicas de Expressão em Língua Portuguesa e Ensino de Português Língua Segunda são algumas das áreas de sua actuação. No âmbito da Revisão Linguística, colabora, desde 2015, na revisão de obras literárias, projectos de investigação, monografias e dissertações. Para além de leccionar em Centros de Preparação para a Admissão ao Ensino Superior, é professor no Instituto Nília e fundador do COPA - Centro de Orientação e Preparação Académica, S.I.
Escreve crónicas, contos e romances. Porém, ainda não tem nenhuma obra lançada.