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Há uma semana que João está internado no hospital. Foi diagnosticado Covid-19 positivo. Vive solitário no leito de um minúsculo quarto. Mal consegue aguentar-se. Os dias ali são um autêntico tédio. Simplesmente nascem e morrem.
Aquela frígida sexta-feira era para ser mais um destes dias. João despertou por volta das sete com o rosto visivelmente abatido. Mal respira. Quase vive e quase morre. Tenta sentar-se e quase não senta. Olha para a janela entreaberta e devolve o olhar para si, todo moribundo, quase-vivo. Enquanto se contriste com o debilitado estado, uma enfermeira abre a porta do quarto. O ar é frio e funéreo. As paredes são gélidas e lúgubres. Entra, caminha até a cama e saúda-o, simpática. Mede-lhe a temperatura. Olha para o termómetro febril e engole em seco. Improvisa um deontológico sorriso. Ensaia um diálogo enquanto olha pensativa para o pobre paciente. - Mais ânimo. Vai ficar bem logo, diz a enfermeira. João, que já estava acostumado com todo aquele ritual, apenas acenou com a cabeça. A enfermeira ajeitou os tubos da botija de oxigénio, trocou os travesseiros e retirou-se.
João permanece cabisbaixo. Seus pulmões lutam, debalde. O vírus lhe carcome a esperança. Já não espera muito. O corpo definha. Sente a morte muito próxima. Às vezes fala com a morte. Vocifera, delira. A morte faz questão de estar por perto. Saracoteia ao redor da cama. Faz sondagens. Vigia-o milimetricamente.
Quando caiu a noite, João estava exausto. Mas o sono demorava chegar. João sentou pensativo no meio da cama. Lançou suas mãos trémulas para cima da cabeceira. Retirou um livro. Abriu-o e pôs-se a ler. Era uma Bíblia. Seus olhos pesados seguiam sorrateiramente pelos versículos como que à busca de um alento. A leitura era dos poucos sossegos de João.
Enquanto se perdia na leitura a morte aproximou-se. Estacou ao lado da cama e olhou ostensivamente para João. Este que já lhe conhecia o cheiro, retribuiu o olhar afoito. – A que se deve a visita, inquiriu. A morte esboçou um sorriso sagaz e retorquiu.
- Quero que venhas passear comigo.
Apesar de conviver com a morte já há algum tempo, João estava perplexo com o convite. Entretanto, não resistiu.
Naquela noite, a morte levou João até à cidade. A morte estava com aspecto imponente e João com ar jovial. Ambos seguiam pelas ruelas e avenidas da cidade. Em meio ao passeio, João decidiu visitar a família que não via há semanas. Sem que ninguém se apercebesse, João abriu a porta e entrou. A morte ficou do lado de fora, no adro. Seus dois filhos estavam a dormir. Sua esposa Ana estava sentada apreensiva no canto da sala. João aproximou-se sorrateiramente dela. Assim que Ana o viu assustou-se. João sentou-se ao seu lado e abraçou-a, efusivamente. Emocionado, João tentou explicar a Ana como chegara até ali. Disse que trazia o aviso da morte. Aviso para ela e para os filhos. Estupefacta a esposa não sabia o que dizer. João retirou lentamente do bolso um envelope e entregou-o a Ana. Era uma frase curta escrita em letras garrafais. Ana leu-a de uma só traga.
Minutos depois João despediu-se. Disse que não demorava. Na companhia da morte caminhou ainda pelo bairro. No percurso João encontrou-se com uma dezena de amigos e conhecidos a quem entregou o aviso da morte, o mesmo que entregara a Ana.
Enquanto isso, no hospital um silêncio fúnebre roçava o minúsculo quarto de João. Quando irrompeu a manhã, a enfermeira dirigiu-se até ao quarto. Desta vez João estava inerte. A enfermeira, preocupada, tentou acordá-lo mas sem sucesso. João não havia regressado do passeio. Na cama apenas havia um corpo e uma carta. Era o aviso da morte. A enfermeira abriu-a curiosa e leu não sem lágrimas.
“A morte está à solta. Ame-se!”, escreveu João.
Kuwala Yosowa nasceu em Tete, na montanhosa vila de Songo. Passou a adolescência entre as cidades da Beira e Matola, época em que desenvolveu o gosto pela escrita. Sua paixão pela arte de escrever floresce na Beira onde teve o primeiro contacto com obras de autores como Hungulane Ba Ka Khossa, Adelino Timóteo, Alain Mabankou, Fatou Dioume, Henry Rider Haggard, William Shakespeare e outros. O interesse pela escrita literária assume proporções vulcânicas na Matola onde lê Mia Couto, Paulina Chiziane, Fernando Pessoa, Eça de Queiroz, José Craveirinha, Eduardo White e outros gurus das letras dentro e fora de portas. Aliás foi na Matola onde ensaia seus primeiros escritos entre poemas e contos. Em 2011 -ainda na Matola- enquanto cursava Filosofia fundou juntamente com alguns nomes da nova nata de jovens escritores como Dávio Faife e Timóteo Papel, o Núcleo de Letras, um pequeno grémio literário que, apesar de ter morrido precocemente, deixou marcas. Entre ler e escrever, Yosowa prefere os dois.