O céu baptizava os mundanos. Apesar da precipitação furiosa, eu estava preocupado em chegar cedo à faculdade para mais uma jornada académica. As nuvens soluçavam chuviscos sob os telhados das casas, na copa das árvores as folhas brindavam ligeiramente em movimentos desordenados ao ritmo do sopro do vento; uma multidão de águas escoava o entulho de areia que fazia a mudança de plano no meio das ruelas com destino a zonas baixas.
Aprontei-me a sair altamente trajado para aquele ambiente de intempérie caracterizado de um frio de congelar a saliva e um tremendo vento. Nos pés havia calçado as minhas botas de borracha de marca “BOVA”, de cor preta. No ombro do meu lado esquerdo trazia uma pasta castanha de pele de couro. Na mão direita segurava um guarda-chuva que ombreava listras de um azul-celeste pouco pálido. O guarda-chuva simulava levantar as pontas à medida que o vento soprava irregularmente.
Enquanto dirigia-me ao ponto de partida dos automóveis, um mar de risadas infantis dispôs-me subitamente a olhar no vértice da rua onde um grupo de crianças saltava sob dois pneus. Descamisadas, elas saltitavam de satisfação e emoção na chuva que tatuava seus corpos minúsculos com pingos-d’água. As minhas botas iam enterrando aos poucos no mar de areia enquanto olhava extasiado o carrossel da criançada que exibia na fresta do lábio um sorriso contagiante. Após um instante de pausa, retomei a minha caminhada que me norteava às proximidades do mercado. Nas encruzilhadas o lixo misturado nos pântanos era vomitado das valas fluviais que achavam-se entupidas pela falta de limpeza. As moscas convidavam-se para um banho de chuva no meio da imundície. Atravessei a estrada e já perto do ponto de partida dos automóveis norteei-me para apanhar meu autocarro que por acaso estava prestes a sair.
No interior os assentos do carro escasseavam-se de passageiros o que permitiu-me fazer uma escolha do assento mais confortável. Fechei o guarda-chuva e dirigi-me ao canto direito onde havia um espaço solteiro para melhor apreciar a vista e de seguida encaixei o meu guarda-chuva entre as pernas.
O motorista arrancou e rumamos ao destino. A força da água da chuva intensificava-se aos poucos ricocheteando os vidros do automóvel quanto mais aumentava sua velocidade. Atordoado, o motorista tentava expulsar com o pára-brisas a espuma provocada pela água da chuva que rebatia sobre o vidro. Era possível ouvir o rugido da chuva que esbofeteava a parte superior a partir do interior da viatura. Não obstante, o carro começou a verter uns pingos que surgiam por cima para o desagrado dos passageiros que encontravam-se no “chapa”. O cobrador procurou acalmá-los, desculpando-se pelo sucedido:
“Pro favor sós passageros calmem-se, é assim mesmo quando chovi... mais depois passa isso aqui”
As palavras do cobrador não serviram de alento convincente para alguns passageiros que novamente suscitaram seu repúdio àquele inconveniente mal justificado. Outros passageiros faziam graças das condições do carro ao motorista:
“ Senhor motorista, isto está mais para uma casa de caniço, não devia estar a carregar num dia destes”.
A inquietação dos passageiros parecia apaziguar por um instante quando um outro defeito foi revelado por um dos passageiros para o espanto de todos no interior:
“ A minha cadeira está cheia de matope”
Descobrira-se que por baixo do penúltimo assento de pares era possível ver a roda a arrolar no exterior e fazia escorrer a lama maticada em volta do pneu adentro do automóvel. Absorto, espreitei em baixo do assento em que me refastelara para verificar se estava em condições, pois a dúvida afectava-me a mente deposito de ter surgido um outro problema do carro, aliás aquilo aparentava-se a um navio sem âncora no meio do alto mar.
O pior ainda estava por vir quando pensava-se que já havíamos ultrapassado o maior troço da viagem, os passageiros que ficavam na avenida Kim Il Sung preparavam-se para descer quando o carro ficou estagnado no meio da estrada para o pasmo de todos.
“Motorista o que se passa, acabou gasolina”?
Perguntou ironicamente um dos passageiros exibindo no seu tom de voz um gracejo de zombaria. Incrédulo, o motorista exprimiu um desalento na face, pois sabia o que se estava a passar. A consequência da irresponsabilidade do condutor reflectia aquele enguiço no carro, a ausência dos requisitos necessários de condução e sua respectiva inspecção. Enfim, todas aquelas burocracias de viação que todo transportador semicolectivo e público deve sempre levar.
“Cobrador deixe-nos descer já estamos mais lá do que para cá de atrasados, porque também dá na mesma estar dentro ou fora desta lata de sardinha”.
Protestou o passageiro por vista o mais tenro de idade dentro da viatura. O cobrador acenou ao motorista e de seguida tencionou fazer a cobrança da viagem. Mas os passageiros puseram-se de pé em contrapartida recusando-se a pagar o valor pelo facto de não terem chegado ao seu destino.
Por Lénio Paulo Muhate