Epístola aos escritores (Ao Dia Mundial do Livro)

 

Epístola aos escritores (Ao Dia Mundial do Livro)
Gerson A. S. Pagarache

Na Roma antiga, um famoso poeta foi julgado por falta de documentos que comprovassem sua cidadania romana: ele era grego. Para a sua defesa no tribunal, ele chamou um orador romano do mais elevado escalão. O poeta em julgamento foi dissolvido da acusação porque o orador, entre os vários argumentos, usou os seguintes: Árquias é um poeta e um grande poeta; o estudo das letras é uma ocupação das mais nobres; Árquias escreveu poemas que hão-de perpetuar a glória de Roma; Os poetas são sagrados.

Esta narrativa real descreve uma época em que o autor e o livro eram uma referência sociocultural e intelectual, cuja actividade era sacra; uma época em que o poeta dedicava-se em erguer, através da escrita, sua nação, universalizá-la e eternizá-la; uma época em que autores eram chamados para educar futuros reis, tal como ocorreu com Aristóteles; uma época em que os autores tinham deveres (hoje o autor tem ‘‘direitos’’); uma época em que os poetas empenhavam-se em ser unicamente o que Horácio chamava ‘‘artífice de sua própria arte’’, i.e, forjador de sua própria espada, agricultor de sua própria plantação, e não um atleta de patrocínios ou de prémios. Aliás, Horácio simboliza uma época em que aspirantes à poesia pediam conselhos, directrizes de como escrever uma arte, tal como fizeram os Pisões, família de elevada classe social, ao experiente poeta Horácio, sem arrogância, sem prepotência (hoje o novo poeta é auto-suficiente: que os velhos o aguentem!).

Foi por esta e outras relevâncias do produtor literário e o seu produto que, em 1995, a UNESCO decidiu instituir o Dia Mundial do Livro e dos Direitos do Autor: 23 de abril, como forma de homenagear eternamente estas sagradas entidades: o livro e o autor. Foi no dia 23 de Abril que morreu Cervantes, autor de Dom Quixote, e nasceu Nabokov, autor de Lolita. Presume-se que tenha nascido e morrido na mesma data (ou aproximada) William Shakespeare, daí 23 de abril.

Hoje, o livro continua a ocupar um lugar prestigiado em nossa cultura global e continua a desempenhar seu derradeiro papel: registar uma Era, educar e ensinar. Infelizmente, a sua depreciação é iminente.

A principal característica do mundo contemporâneo é a horizontalização da palavra. Com o advento da internet e surgimento de cafés, antiteatros e salas virtuais, perde-se a hegemonia da palavra. Segundo Umberto Eco, a internet deu voz ao imbecil da aldeia, que sem repertório nem referências, debate e critica o mais expoente académico de seu país, afinal, a conta pertence-lhe, portanto, o direito é seu. O mais ‘‘grave’’ é que o imbecil da aldeia também escreve e publica. Aí o perigo iminente da depreciação do livro. Hoje, a capacidade de selecionar e ler um bom livro incrementou. O leitor depara-se com um desafio imenso de peneirar entre o útil e o desagradável.

Entretanto, hoje não deixa de ser um dia oportuno para lembrar que não há, suponho, uma ferramenta construtiva e educativa mais completa que o livro. Este embute o indivíduo de inúmeras competências: competência linguística, quando eleva o seu domínio da língua; competência intelectual, quando molda a capacidade racional e criativa do indivíduo através dos debates que os livros ressaltam; competência cultural, quando o indivíduo mergulha em múltiplos mares culturais que estruturam as sociedades e, através desse mergulho, o leitor desenvolve empatia, a qualidade ética que garante uma convivência social harmónica e humana. Por estas e outras razões, ler é nosso direito, ler é nosso dever. Viva o livro! Viva o autor! Viva a livraria!


Gerson A. S. Pagarache

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