ALGIA III: Hemorróidas, por Ericson Sembua

Créditos da imagem: @daude.amade.7

   Sobram, às patas do relógio, curtos passos p'ra que completem a travessia da ponte do sembrol. O tom de íris álgida e sombria domina a inteira Serra Vumba e engole a minha minúscula palhota. De súbito, manifestam-se, enraivecidos, ventos oriundos de Sei-Lá-Onde. Oliver Mutukudzi foge do rádio; vai à nenhures. O relógio, que segurava a parede caulífera, esvoaça para... Merda! Cai o candeeiro, morre a sua chama. Tudo o que vislumbro são sombras. Pouso o vôo da caneta sob o coração do caderno. Papéis escondem-se do meu alcance. O teor está assombrado. Que horas são? De meus remédios não beijo sequer uma sombrinha. Livro-me dos óculos; são-me frívolos. O relógio, esqueci p'ra que lado vôou. Dúbio. Permaneço suspenso por sobre o mubhedha¹ composto pela folhagem de muroros² e mulembes³. 

       Cálidas algias abscindem-me friamente o ânus. Hemorróidas. A dor; chega ao paladar com o sabor de fezes húmidas; sepulta-me a paciência na ascensão do fedor; suga-me a veníflua e flâmea íris; e se alastra, pela inteireza do vulto, um ardor proveniente da Casa de Bherizebhubhu. A língua é uma espada, lembro-me. E em gritos que adormecem o vigor d'uma trombeta, rasgo as vísceras do silêncio. Homens choram quando não há testemunhas. Então, derramo meu pranto livre de pudores. Sob o sôfrego influxo da dor, vocifero interjeições ininteligíveis. Mexo-me, inquieto, a impugnar a sarna. Rebolo como uma bola sob a condução d'um futebolista inepto que, sem ledo êxito, tenta driblar a dor. Caio do mubhedha [para o chão]. Bato com a cabeça num tronco ao pé das ombreiras. O ânus arde como o coração de um vulcão em êxtase. Entra em erupção. O cérebro parece uma ruína sob o domínio de obesas algazarras. O coração descompassa, em tal baile, ao ritmo da tartamuda marabenta dos pulmões. Ah! Chove lá fora. Mamã diria que Deus está a chorar. Está Ele com pena de mim? Foda-se! Esqueci de fazer-me à oração noturna. A sinfonia da chuva ressuscita a idosa memória d'uma elegíaca cantiga. Trovoadas manifestam-se, são anjos a aplaudirem? Que importa?

       Perscruto, no espectáculo da chuva, um ponto de convergência - um centro no qual deposito a minha inteira atenção: -  estimo a sua líquida e divina melodia; experimento a sua fluência; perco-me na cadência da sua poeticidade. Distraio, assim, as dores que, paulatinamente, se divorciam do ânus. As hemorróidas adormecem. As sombras evaporam, fogem. Resmas dispersas, cromatizadas pelas rubras seivas expelidas pelo ânus, glorificam as entranhas da palhota [de ramagem e folhagem verdes]. E vislumbro o candeeiro prostrado à minha direita; e o relógio à esquerda; e os meus remédios suspensos por sobre um tronco diante de mim. Ergo-me. Faço-me ao mubhedha. E eis que, após um perfunctório instante, ouço outra cantiga. Dessa vez é diferente. Dessa vez é impostergável. É o galo. É o meu despertador.

Ericson Sembua

____________

¹ de CiShona, saco de dormir.

² de CiManyika, Anonoeira.

³ outra variedade de Anonoieras.


Sobre o autor:

Ericson Sembua, que outrossim responde pelo criptônimo Aubmes Noscire, é um neófito poeta e prosador, natural do Coração de Moçambique [Manica]; funciona como editor no sítio eletrónico da Platina Musik, e é membro sénior da mesma agremiação; opera como Sepulteiro Voluntário na Necrópole Pública do Bairro Vumba, em Manica; é alfarrabista; e tem o corolário do seu ofício sob exposição em gazetas, magazines, blogues, crestomatias poéticas, entre outras plataformas.


Enviar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem