Eu não sou pessoa... sou polícia!

 

Eu não sou pessoa... sou polícia!
Foto AQUI


O homem da farda está fora de si. É um cão vadio seguindo os instintos da raiva. É magro. Tão magro que o seu fardamento parece estar pendurado num esqueleto feito só de arames, poeiras e sombras. Tem um apito ao pescoço, uma AKM que faz tanto esforço para mantê-la no ombro esquerdo e um chamboco em contínua rotação na palma da mão direita. Ele embrenha-se no meio da multidão de vozes:

(quinze quinze sabão. quinze meticais vinagre. dez dez mabomu... i dez mabomu, mana! compra, irmã, está dez. vou-te dar com bacela... makhofu halenu... makhokho i cinco... baixou!!... baixou!!...)

Bruscamente, o homem da farda imobiliza-se. Acaricia a arma como se fosse membro do seu minúsculo corpo. Lança os olhos arredores. Observa tudo, franze a cara como quem vê diante de si a pior inospitalidade do mundo. Depois assopra duas vezes o apito. Grita:

- Todo mundo desaparecer daqui!!!

Ninguém o ouve.

Ignoram-no?

Ninguém lhe doa nenhum pingo de atenção.

Por quê? A azáfama e a cede pelo dinheiro dominam os sentidos de todos vendedores:

(dez meticais tikuleti. dez dez tomati. vinte meticais auriculares. trinta trinta tihaka...)

O homem, frustrado, e mais raivoso que antes, decide aplicar o conhecimento adquirido na formatura. Não volta a assoprar o apito nem a gritar. Sem dó, marcha sob as pirâmides de produtos perfilados no chão encapado por sacos e pedaços de papelão. Tritura tomates com a sola do seu sapato. Chuta cebolas e repolhos. Destrói tudo ao seu alcance. É agora que os vendedores notam a sua presença; dispersam-se como um bando de gazelas fugindo do mais feroz predador.

- Cuidado!!!

- É polícia!

- Carrega teu tomate...

- Está a pisar... !

- Está a pisar coisas aquele polícia... vamos correr!!

- Mana, vamos, mana! Vamos correr!

- Eu não aguento correr. Meu pé dói. Caí na machamba.

- É qual polícia deles?

- Carrega teus pacotes de massa, xan'wari! É aquele polícia... tá vir...

- Aquele muito chato?

- Sim! Aquele magrinho-palito! Vamos correr. Aquele polícia não perdoa.

O homem da farda intensifica a operação. Além de pisar os produtos, agora chamboqueia qualquer vendedor que consegue alcançar. Na verdade, nem todos conseguem pôr-se em fuga. Há quem os músculos não aguentam movimentos mais rápidos que os de um camaleão. A idade e o peso da vida roubaram-lhes a motricidade. É o caso da velhinha à qual o polícia agora se dirige. Ao vê-lo, a anciã perde o chão. Não sabe o que pegar ou largar entre os dois montinhos de limão e mapfilwa.

- Meu Deus, aquele polícia quer bater aquela velha!

- Qual velha, cunhada?

- Aquela que nos vendeu mapfilwa.

- Que pena, cunhada. Mas esses polícias pah, deviam deixar essas pessoas venderem em paz.

- Cunhada, coisas do nosso país são complicadas; nossa polícia só sabe nos castigar e nos extorquir. Cumprir com as suas devidas obrigações... nada!!!

- É isso, cunhada. E sempre dizem que são ordens... ordens superiores.

A velha treme, cheia de medo. Faz esforço para se levantar. Não consegue. O corpo já não obedece as ordens do cérebro. O homem da farda aproxima-se. Ela junta as palmas em forma de pedido de perdão; suplica com a voz trémula:

- Desculpa, meu filho, estou a sair... vou carregar minhas xijumbas agora mesmo.

Porém, ele não está para empatias. Quer é continuar com a sua operação, ‘’Operação Nó Górdio” ao seu semelhante. O fardamento conferiu-lhe um estatuto superior ao do povo; deve ser isso que ele pensa. Enfim! Ele chuta o limão da velha, pisa toda mapfilwa. Quando está prestes a chamboqueá-la, eis que corajosas vozes começam a afrontá-lo:

- Chefe, não tens vergonha mesmo...

- Tens coragem pah, queres chamboquear a essa velha com idade da sua avó…?

- Você não está bem de cabeça. Que tipo de pessoa é você?

O homem desiste. Volta a assoprar o apito. Três vezes seguidas. Os vendedores concentram-se nele. O homem discursa em resposta:

- Eu não sou pessoa... sou polícia. Sou autoridade, vocês sabem. E eu exijo respeito...

Os vendedores não o deixam terminar, começam a vaiá-lo.

- Todos os dias, vocês andam a nos perseguir... afinal é para irmos vender aonde? Se não nos perseguem pedem dinheiro de refresco...

- Nós estamos cansados nós... cansados de vocês... há muitos ladrões aqui, mas vocês não lhes pegam... só perseguem a nós que estamos a phandar a vida.

O homem assopra o apito mais uma vez e em seguida declara:

- Vocês já foram ditos... este é um mercado grossista. Não é um mercado retalhista. Por isso que devem sair. Amanhã não vos queremos ver aqui. E vocês são vendedores informais...

- Sim, somos informais porque ninguém nos informa nada. Nós já perguntamos, é para irmos vender aonde, chefe?

- Não sei. Vão perguntar o presidente do município. Amanhã, se vos encontrarmos aqui, havemos de recolher todos para as celas.

- E os nossos produtos que você andou a pisar?

- Não me chateiem a cabeça. Estou a fazer o meu trabalho.

- Sinceramente… vais arder no inferno. Não és boa pessoa.

- Eu não sou pessoa, pah... sou polícia…


Por Fernando Absalão Chaúque

Enviar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem