João Dideus

 


As ruas levantam muita poeira. As mãos procuram abrigo para os olhos. Manuel Gômes, polícia. Vive de aluguer na casa do Bai Satar Khamssá. Edifício colonial repintado várias vezes. Tem antena de TV, janelas altas e grandes. Tecto falso com buracos, moído por abelhas-carpinteiras, gigantes. Faz compras mensais à vale. Na mercearia do seu senhorio.  Tem uma rotina predefinida pelos vínculos da farda cinzenta.

Hoje as pessoas foram obrigadas a ficar em casa. Menos ele e sua corporação. O povo e a pátria o aguardam para salvamentos. Socorros e proteção. Limpa as botas e passa graxa preta. Ficam brilhantes. Isso lhe alegra. Apesar da poeira não lhe depositar nenhuma misericórdia de esforço. Pega na arma e põe na cintura que ameaça cair com as calças. Aperta o cinto que reclama por mais um furo para sustentar a magreza.

Manuel Gômes. Solteiro e sem amiguinhas. Tem em seu acervo, coleções de fotografias da sua última paixão. A mulata Vanda. Ele a lembra com amargura das façanhas do amor. Guarda as fotos para sempre poder amaldiçoar as lembranças. Mesmo ela ainda viva, já lhe pintou uma cruz vermelha na testa. Foi traição de amor nas fileiras da formação de polícia.

Vanda tinha problema de beleza, de cheiro e de gostos. Tudo era demasiado presente nela. Quando todos perfilavam, ela desfilava e suas nádegas dividiam o seu corpo em hemisférios. E seu uniforme foi feito sobre medidas extremas das suas curvas. Manuel Gômes não sofria de muitos ciúmes. Confiava nela. Assim como combinaram e juraram quando de mãos dadas se alistaram para polícia. Com beleza de transbordar salivas, Vanda passou em secreto a ser dormida por instrutores. Manuel não acreditava quando ouvia, até ao dia em que viu com seus próprios e lacrimosos olhos. Calou e engoliu a fatia de desgosto para não perder o curso.

No dia da graduação, Vanda estava grávida. Olhou a esquerda sem virar a cabeça e viu o seu amado amargurado. Manuel deitou beijos para farda, botas, arma e a bandeira da pátria amada, desprezando a particular presença. Na esperança de rasgar as fotos um dia. Mas até hoje não conseguiu.

Manuel engole o último gole de chá e sai apressadamente. De frente, no rodapé da casa vê um corpo ainda dorminhoco. Coberto de trapos de lençóis velhos.

João Dideus, acorda! Não vê que já amanheceu? Vai na minha casa tomar chá. Joãozinho levanta e espreguiça os músculos bebendo todo vento do universo para os pulmões. Ele fede no corpo. Na boca, o hálito da saliva lhe deita nódoas nas barbas.

João Dideus não tem parentes conhecidos, é irmão de desconhecidos. Dorme na rua, na barraca, nas machambas, em casas alheias. Quando atiram comida, ele apanha. Quando atiram bebida, ele apanha. Menos coisa podre. Não come.

Aquele é maluco, mas não come lixo. Só não tem antepassados. Por isso anda a deriva; parece cabritos de Nfukua. João Dideus não sabe quando começou a respirar vida. Ele lembra que vem de Búzi, às vezes do Incomate e às vezes da Zambézia. Tudo depende do tamanho da lua. Ele é único amigo de verdade do Manuel Gômes, que o afere afectuosos cuidados. Desde maldições amorosas da Vanda.

Manuel Gômes regressa da sentinela e procura pela companhia. Encontra. Obriga Joãozinho para um banho em troca de comida. João Dideus nega. Chega a lutar contra água, insulta. Fala mal. Grita parece esfaqueamento. Morde o Manuel. Lança um grunhido. Os vizinhos ajudam. Algemam a criatura.   

O banho foi-lhe inescapável, a água fria toca a pele como uma cascata cheia de vida correndo para o precipício. João Dideus vê sabão escorregando o seu corpo. A espuma lhe é por muito tempo desconhecida. Parece cuspo. Vê no espelho partido que lhe fizeram a barba. Faz cara de contente, de descontente, de alegre e de triste. Não se imaginava na imagem em sua frente. Sorri. Faz caretas. Brinca com o espelho. Fica lúcido.

Viu Joãozinho, a água não morde. Viu?

Faz longa estrada que o tempo teve que percorrer.  Já calmos, sentam sobre cadeiras plásticas de cor verde. Em volta da mesa coberta de pano xadrez com desenho de frutas. Manuel decide quebrar o silêncio começando por se desculpar. – João Dideus me perdoa, mas estás bonito. João sorri somente com os dentes de frente.  

– Mas quando é que nasceste mesmo?”

- Quem...? Eu? Nasci no dia da lua minguante. Não tinha vento. Não tinha chuva. Só tinha choro da minha mãe. Sangre, “muinto” sangre. No vale do rio Incomate. Ela devia ir viver de macaiaia no Maputo, viver no bairro chique a comer finória e subir carros. Mas de repente ficou engravidada. Era eu ali dentro dela. Tentou me tirar, mas não conseguiu. Tomou tudo mas eu escapei. Só, muito atrasada, foi no hospital. O enfermeiro disse não ia ser possível abortar. Mas ela não aceitou ficar assim. Sem fazer nada. Tomou medicamento para eu morrer. Mas nasci. O aborto foi ali mesmo, no rio Incomate. Eu não chorei lágrima nenhuma, e nem som de bebé. Porque nasci nesse vosso mundo de dinheiros e não de amor. De bebidas e não de afecto, de corrupção e não de opção. Minha mãe me deitou na água para ir cuidar de filhos dos outros, como empregada. Ela pensou que eu não iria viver. Logo veio um hipopótamo grande como essa casa e me engoliu. Cresci lá dentro dele, a comer capim das tripas, até eu vir chegar aqui.

- Huummmm João Dideus, estás a mentir. Se na semana passada disseste que nasceste no rio Búzi.

- Quem? Eu? Não sou eu. É a lua que me disse. Eu só falei...! xiii, esse garfo é como a mim. Eu também sou de ferro. Njanje que fica embaixo. Para pessoas pisarem, e cagarem nos destinos dos indefesos, como esses meninos armados em doutores de passagens automáticas. Você não vê que lua está “encima” a acender? É para iluminar, para nós contar dinheiro de noite. Para pagar malta vocês refresco, para não levar Txigomba. Riem-se!  

-Agora a estória do Rio Búzi é quale? O polícia fala com sarcasmo, de deitar as arreias para o tempo passar. Na esperança de almofadar o estresse do dia-a-dia, tomar o sumo da vida para minar o vazio que Vanda deixou, com ilusões cósmicas de João Dideus.

- Qual? Aquela? Xiiii... não sabe? Naquele tempo minha mãe era uma boa gaja, jovem bonita. Uma dama bem naice. Muitos gajos queriam ela, meu! Mas meu cota tinha chachu e muito taco. Era mulato, mas massena. Bolou e ela aceitou. Curtiam boas cenas. Ela punha cabelos de falecidas vindo da Índia, vestido do Brasil e bolsa de Kapulana cor-em-cor. Sabe como é essa gente da zona? Têm muita inveja. Não conseguiam ver minha mãe com barriga Bigi, txaaaa ...! deitaram inveja sobre ela. Mandaram crocodilo quando ela estava lavar no rio. O meu parto foi assim: o crocodilo mordeu na barriga dela, eu escorreguei e sai entre as pernas. Chorei, chorei pedindo socorro de vida. Ninguém conseguiu me perceber. Chorei tanto até minhas lágrimas salgarem o rio. Lembra das mbambas que fizeram por causa da água? As pessoas queixavam-se de sofrimento de Deus. Te falo assim: pessoa também sofre por fazer sofrer outra pessoa. Quando fura vista doutro, fura sua alma também. Mas não sente. A ferida do sofrimento é a essência da sobrevivência. O que não dói é morrer. Eu não tenho medo de morrer. Eu tenho medo de estar morto. “Asqui” custa muito viver toda eternidade sem se movimentar. Mesmo chorar, as pessoas não choram a morte nem o morto. As pessoas choram lembranças. Isso custa muito de sentir. Nem no caixão, imagina a fome que os vermes causam ao comer as tripas? Parece nepotismo dos grande chefes contra os Chingondos. Hahahahahá Chingondos! Hahahahahá Chingondos! Hahahahahá Chingondos.  João Dideus ri, muito alto. Repete inúmeras vezes Chingondos. E sai correndo. Seguindo borboletas. Seguindo estrelinhas.

Manuel Gômes cala, assiste e lembra das suas fantasias de meninice. De quando brincava de cabra-cega, polícia e ladrão, e Papá e mamã. Os seus momentos ébrios são interrompidos. Chega o seu colega. – O comandante está te chamar. Parece que vamos proteger alta individualidade durante o ciclone. Logo Manuel apruma-se na vinculada calça. E saem às pressas.

Quando a tarde fugia para noite, ele estava na casa da alta figura. Fizeram jantar de carne de vaca. Manuel não comeu. Ficou a vigiar inerte ao assassinato da fome. Sentado sobre a cadeira rota do guarda. Lembra o dia em que viu a Vanda com Instrutor em obscenas posições de fazer amor. Sobe-lhe a raiva. Imagina como seria valente naquele momento: - pegar na Vanda ainda nua, dar um jato de bofetadas na cara. Pegar no instrutor pelas bolas, dar uma rasteira, dar socos até sangrar. Bater bem com pedra e expor o gajo na televisão para perder o emprego e depois dizer, parabéns a vocês por quebrarem o meu coração.

Palavras ao vento. Nada disso aconteceria no país dos peixes pequenos, ele acha. O ar cada vez vai mostrando presença. As chapas do projecto de melhoramento de infraestrutura do senhor Mandiega, doutro quarteirão sobrevoam e caem próximo dos pés policiais. Ele esquiva, espreita outros compartimentos do quintal. Não há danos humanos. Só materiais espalhados pelo relvado.

João Dideus recupera lucidez ouvindo o vento. Regressa a casa do amigo. Não o encontra. Toma uma dose de preocupação que não consegue engolir. – Esse Manuelinho, é muito magrinho. Esse voa fácil com vento. Vou procurar onde ele aterrou.  

O vento bate forte de esconder os olhos com antebraço. O barulho das almas vivas vem de todo canto. E o apagão morde os miolos. Manuel Gômes vê a Vanda e o instrutor a caminharem de mãos entrelaçadas, pela rua de frente. Alheios ao desastre. Manuel grita loucuras profundas de ciúmes. Raiva e revolta. Ele treme, não sabe o que fazer. – parados ai, identifiquem-se. Senhor aí, deixa mão dela. Eles não obedecem. Manuel repete e a desobediência continua. E ele dispara muitas vezes, para sombras da sua imaginação. As balas alvejam mortalmente João Dideus e a Mulher com quem ele procurava ao Manuel Gômes.


Glossário
Nfukua - Maldição
Njanje- Ferro ou linha ferrea
Txigomba- a varra de polícia
Chachu - boa retórica (convincentes)
Mbambas- Cerimônia


Por Francisco Raposo

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