O Xirico do meu Avô

   


Ao meu avô

Meu grande xará


Todas manhãs, o sol arquitectava-se à beira do horizonte. O volume dos automóveis cadenciando o alcatrão pávido crescia nos meus ouvidos. A barulheira era estonteante ao caraças, não importava o tempo de estadia naquela localidade e até mesmo para os nativos. Era simplesmente abismal ter os órgãos auditivos a beber daquele desassossego que sabia a eternidade. Todavia, era naquele ambiente que gostava de habitar todos os finais de ano quando estivesse de férias.

Apesar do número de visitantes engordar durante a época natalícia e festiva, o meu avô gostava muito de receber os seus netos. O sorriso rasgado, carimbado na sua face dizia tudo; aliás o seu rosto acendia de alegria ao ver todos os netos reunidos no seu quintal apertado. Os mimos e a libertinagem que desabrochavam das asas do seu abraço eram o motivo daquela onda infantil que lhe costumava ir visitar todas as vezes na fase derradeira do ano.

O cinismo de criança possuía-me todo logo que ficava de frente com o meu avô. Meu corpo descansava apaziguado quando deitava-me no seu colo afável, com os seus braços frágeis e mãos macias acariciava-me a cabecinha confortando minha alma. Na maioria das vezes eu fazia um olhar de esguelha e correspondia a sua atenção passando minhas mãozinhas na sua barba grisalha que dava uma sensação de um mar de espinhos a fazer cócegas nas mãos.

“Venham comer, a comida já está pronta” – convidava a avó todas a vezes que acabava de retirar a panela de xikentu do fogo. Perfilados, cada qual tomava conta do seu prato, sentados na esteira, tapete que ao anoitecer servia de cama. O castanho da cor dos fios de palha que adornavam-no já ia se desfazendo de tanta urina nocturna de alguns netos que não conseguiam controlar as mangueiras durante o sono. A avó nunca poupava e punha-se imediatamente a ralhar com os distintos autores desavergonhados. Mas, quando o meu avô achava-se presente procurava acalmar os ânimos saindo em defesa dos seus netos procurando chegar a um acordo pacífico com eles aconselhando para não voltar a acontecer. Não obstante, a melodia de um Xirico embalava toda criançada que depois do “mata-bicho” dispersava-se ao longo das ruelas a brincar com carrinhos de arrame e outros improvisavam paus para conduzir pneus velhos e o xingerengere. Contudo, eu não ousava desgrudar dos braços do meu avô. Ao ritmo do receptor que emitia habitualmente nas manhãs a RM, estação preferida do meu avô. A música de Fany Mpfumo chegava aos meus ouvidos de forma descontraída e arrebatava-me para uma balada descompassada. A melodia de instrumentos tradicionais seduzia-me a alma. Quando soava o kengelekeze mais queria grudar-me ao aparelho.

Hoje já não há o meu avô. Se quer o Xirico. Mas, diariamente, suas memórias e saudades pronunciam-se mais vivas que antes.


Por Lénio Paulo Muhate

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