Solo*, conto de Erick Bernardes



O felpudo sofá cáqui, emoldurado por um edredom desbotado e encardido, compunha o quadro da decadência conjugal que assolava o senhor Antenor Saldanha. Foram 36 anos de casado jogados fora por causa de um amor paralelo e malsucedido. Agora cada um no seu canto, ele chorando lembranças domésticas e a ex-esposa lamentando os poucos sonhos realizados, embora Saldanha ainda ruminasse esperanças.

Este homem que acompanhamos agora, outrora ostentava porte físico robusto e viril. Mas, atualmente, perambula noite e dia pela casa de Irene, única filha que teve com a ex-mulher Marta, a qual o abandonou tão logo o caso de infidelidade veio à tona nos jornais cariocas. Irene, fruto dos bons tempos de prosperidade, foi quem que lhe deu apoio nos momentos de desalento extremo, a moça tem sido seu porto-seguro. Quando criança, a filha corria no parquinho do prédio ignorando o mundo adulto e infame, enquanto o pai zeloso se deixava levar pela música daqueles gritinhos sapecas da inocência feliz. A menina cresceu, casou-se, é hoje mãe de dois filhos, e apresenta um programa televisivo sobre cinema e teatro. Só Irene o faz rir quando graceja: “Papai, sua vida daria um filme, um roteiro daqueles do tipo do Pedro Almodóvar. Além de outras histórias bisonhas, repletas de sexo, jogatinas, viagens, negócios escusos”.

Ela é alento. Sem sua candura talvez metesse um tiro na própria cabeça, ou virasse mendigo, na falta da coragem para dar cabo à própria vida.

Quem visse o senhor Antenor Saldanha agora não o reconheceria. O patriarca protetor se esvaiu tal como flor sem vaso d’água. Minguou juntamente com o patrimônio despendido, enquanto suas finanças ainda não chegavam ao grau zero. Até onde duraram as cifras bancárias manteve o viço. Seu caso extraconjugal com Nina insuflava-lhe segurança de macho alfa. Foi só a crise se instalar, que a usurpadora fez conforme fala o vulgo de hoje: “meteu o pé”. Dá pena de olhar agora! Não é tão velho assim, mas os músculos rijos e o andar longilíneo de quem já foi remador do Clube de Regatas Flamengo cederam lugar à gordura acumulada e à curvatura senil, sob o peso da consciência arrependida. O que ali se encontra por hora, vagando com a cabeça em retrospecto, é uma sombra, ou melhor, um rastro sombrio da decadência “garanhã”. “Resto de homem iludido” (dizem uns), “sem-vergonhice mesmo” (dizem outros). Mas... para o magnata do passado, a beleza pueril de Nina, somada ao prazer malicioso e descomedido, foram seus maiores algozes pretéritos.

Com os óculos de grau na mão, ao mesmo tempo em que desengordura as grossas lentes multifocais, o falido publicitário relembra os bons tempos idos, muito antes de ter caído na teia maquiavélica da rainha do pompoarismo. Enquanto o malsucedido empresário recorda o seu império posto abaixo, a obscuridade da visão retorna, mas desta vez mais forte. Muito forte. Tonteira. O mal-estar revela-se a olhos vistos. Olhos de quem? A sudorese empapa o pijama cinza, porém, desta vez, a dor no peito é outra. Vertigem. O apartamento é pequeno, são só oito passos de retorno até o sofá na sala. Necessário sentar-se. A constrição cardíaca aumenta, não dá tempo. O som abrupto do tombo ali, ao pé da estante, chamaria fatalmente atenção se houvesse alguém por perto. Os óculos espatifaram no chão. E, entre os cacos, um pequeno porta-retratos da jovem crítica de cinema Irene Saldanha: em sorriso largo, vestida de gala, em companhia do pai e herói.

*O texto "Solo" foi cedido pelo autor e consta do livro Panapaná: Contos sombrios (Ed. Autografia, 2018, p. 17-19).

Sobre Erick Bernardes
Como professor, escritor e palestrante tenho me dedicado a divulgar a cultura e a arte de forma itinerante e pelas mídias digitais. Sou formado em Letras pela Faculdade de Formação de Professores da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), com mestrado em Estudos Literários pela mesma universidade. Atualmente curso o doutorado em Literatura Comparada na UFF (Universidade Federal Fluminense). Escrevo como colaborador para o Jornal Daki: a notícia que interessa, também para a Revista Eletrônica Entre Poetas e Poesias e o Suplemento Literário Araçá. Sou professor efetivo de Redação e Literaturas da Rede Adventista de Ensino no Rio de Janeiro. Além disso, tenho-me dedicado com afinco a palestrar nas escolas e eventos culturais sobre os meus livros Panapaná: contos sombrios e Cambada: crônicas de papa-goiabas, cujos textos buscam recontar o passado recente dos fluminenses de forma quase fabular, valendo-me da ótica do entretenimento ficcional. Ministro oficinas literárias e trabalho com contação de histórias e recital de poesia. Produzo e divulgo também livretos (ou folhetos) de Literatura de Cordel nas escolas e comunidades carentes. Tudo isso pode ser visto e lido no meu site aqui

Para quem queira entrar em contato comigo: ergalharti@hotmail.com ou meu Celular\WhatsApp: (21) 98571-9114.

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