O
felpudo sofá cáqui, emoldurado por um edredom desbotado e encardido, compunha o
quadro da decadência conjugal que assolava o senhor Antenor Saldanha. Foram 36
anos de casado jogados fora por causa de um amor paralelo e malsucedido. Agora
cada um no seu canto, ele chorando lembranças domésticas e a ex-esposa
lamentando os poucos sonhos realizados, embora Saldanha ainda ruminasse
esperanças.
Este
homem que acompanhamos agora, outrora ostentava porte físico robusto e viril.
Mas, atualmente, perambula noite e dia pela casa de Irene, única filha que teve
com a ex-mulher Marta, a qual o abandonou tão logo o caso de infidelidade veio
à tona nos jornais cariocas. Irene, fruto dos bons tempos de prosperidade, foi
quem que lhe deu apoio nos momentos de desalento extremo, a moça tem sido seu
porto-seguro. Quando criança, a filha corria no parquinho do prédio ignorando o
mundo adulto e infame, enquanto o pai zeloso se deixava levar pela música
daqueles gritinhos sapecas da inocência feliz. A menina cresceu, casou-se, é hoje
mãe de dois filhos, e apresenta um programa televisivo sobre cinema e teatro.
Só Irene o faz rir quando graceja: “Papai,
sua vida daria um filme, um roteiro daqueles do tipo do Pedro Almodóvar. Além
de outras histórias bisonhas, repletas de sexo, jogatinas, viagens, negócios
escusos”.
Ela
é alento. Sem sua candura talvez metesse um tiro na própria cabeça, ou virasse
mendigo, na falta da coragem para dar cabo à própria vida.
Quem
visse o senhor Antenor Saldanha agora não o reconheceria. O patriarca protetor
se esvaiu tal como flor sem vaso d’água. Minguou juntamente com o patrimônio
despendido, enquanto suas finanças ainda não chegavam ao grau zero. Até onde
duraram as cifras bancárias manteve o viço. Seu caso extraconjugal com Nina
insuflava-lhe segurança de macho alfa. Foi só a crise se instalar, que a
usurpadora fez conforme fala o vulgo de hoje: “meteu o pé”. Dá pena de olhar
agora! Não é tão velho assim, mas os músculos rijos e o andar longilíneo de
quem já foi remador do Clube de Regatas Flamengo cederam lugar à gordura
acumulada e à curvatura senil, sob o peso da consciência arrependida. O que ali
se encontra por hora, vagando com a cabeça em retrospecto, é uma sombra, ou
melhor, um rastro sombrio da decadência “garanhã”. “Resto de homem iludido” (dizem uns), “sem-vergonhice mesmo” (dizem outros). Mas... para o magnata do
passado, a beleza pueril de Nina, somada ao prazer malicioso e descomedido,
foram seus maiores algozes pretéritos.
Com
os óculos de grau na mão, ao mesmo tempo em que desengordura as grossas lentes
multifocais, o falido publicitário relembra os bons tempos idos, muito antes de
ter caído na teia maquiavélica da rainha do pompoarismo. Enquanto o malsucedido
empresário recorda o seu império posto abaixo, a obscuridade da visão retorna,
mas desta vez mais forte. Muito forte. Tonteira. O mal-estar revela-se a olhos
vistos. Olhos de quem? A sudorese empapa o pijama cinza, porém, desta vez, a
dor no peito é outra. Vertigem. O apartamento é pequeno, são só oito passos de
retorno até o sofá na sala. Necessário sentar-se. A constrição cardíaca
aumenta, não dá tempo. O som abrupto do tombo ali, ao pé da estante, chamaria
fatalmente atenção se houvesse alguém por perto. Os óculos espatifaram no chão.
E, entre os cacos, um pequeno porta-retratos da jovem crítica de cinema Irene
Saldanha: em sorriso largo, vestida de gala, em companhia do pai e herói.
*O texto "Solo" foi cedido pelo autor e consta do livro Panapaná: Contos sombrios (Ed. Autografia, 2018, p. 17-19).
Sobre Erick Bernardes
Como
professor, escritor e palestrante tenho me dedicado a divulgar a cultura e a
arte de forma itinerante e pelas mídias digitais. Sou formado em Letras pela
Faculdade de Formação de Professores da UERJ (Universidade do Estado do Rio de
Janeiro), com mestrado em Estudos Literários pela mesma universidade.
Atualmente curso o doutorado em Literatura Comparada na UFF (Universidade
Federal Fluminense). Escrevo como colaborador para o Jornal Daki: a notícia que interessa, também para a Revista Eletrônica Entre Poetas e Poesias e o Suplemento Literário Araçá. Sou professor efetivo de Redação e Literaturas da Rede Adventista de
Ensino no Rio de Janeiro. Além disso, tenho-me dedicado com afinco a palestrar nas escolas e eventos
culturais sobre os meus livros Panapaná:
contos sombrios e Cambada: crônicas
de papa-goiabas, cujos textos buscam recontar o passado recente dos fluminenses
de forma quase fabular, valendo-me da ótica do entretenimento ficcional. Ministro
oficinas literárias e trabalho com contação de histórias e recital de poesia.
Produzo e divulgo também livretos (ou folhetos) de Literatura de Cordel nas
escolas e comunidades carentes. Tudo isso pode ser visto e lido no meu site aqui.
Para
quem queira entrar em contato comigo: ergalharti@hotmail.com ou meu Celular\WhatsApp: (21) 98571-9114.