Tenente Lúcius estudou em boas escolas, formou-se em História,
mas não exerceu a profissão. Em vez disso, prestou concurso e passou para a
Polícia Militar, chegando até ao cargo de oficial na instituição. Responsável
pela administração da sede de Polícia Militar Florestal, lotada na antiga
Fazenda Colubandê, o curioso Lúcius apaixonou-se pela arquitetura colonial da velha
construção. Sua menina dos olhos na fazenda tornou-se obviamente a casa grande,
por causa do esmero com que fora erigida. Abarcando uma área de 687 metros quadrados,
as paredes do prédio central da Fazenda Colubandê agora abrigam a sede do
batalhão. Arquitetura composta majoritariamente de pedras, tijolos e cal,
atingindo uma robustez de causar inveja aos melhores quartéis do mundo todo.
Dizem que as irregularidades do telhado se devem ao fato das telhas terem sido
confeccionadas sobre as coxas dos vários escravos que lá trabalhavam. Doíam as
coxas dos negros cativos sim, mas fazer o quê, eram obrigados. Sentiam dor, mas
eram escravos, melhor era obedecerem. Pois bem, os homens escravizados, de
tanto sofrerem por causa do trabalho excessivo, deixavam-se entorpecer por bebidas
feitas com plantas alucinógenas. Sim, verdadeiramente, drogavam-se. Decorreram
muitas horas moldando placas de argila amolecida e cunhando concavidades na
região acima dos joelhos. Por causa disso, os frequentes espasmos causados nos
músculos que revestiam cada fêmur de escravo deveriam ser amenizados pelo chá
de cogumelos roxos, cultivados por curandeiros locais. Assim Lúcius descobriu,
só porque leu no livro tombo da propriedade: “Negros e negras moldaram em seus corpos cada peça de barro necessária
à cobertura do casario”. Em outras palavras, conforme o nosso vulgo: “um telhado torto porque foi feito nas
coxas”.
Conta-se que na época áurea da fazenda, o espaço da casa grande
fora destinado à morada da família proprietária, assim, logo abaixo, via-se
(como ainda hoje é possível de ver) um largo porão onde se dimensiona a
senzala. A fazenda, construída no século XVII, inicialmente um grande engenho
de cana-de-açúcar e grãos de todos os gêneros, possuía considerável contingente
de trabalhadores escravos. Ela está situada na cidade de São Gonçalo; há relatos
de que o espaço da propriedade abrigou centenas de judeus fugidos da Europa.
Comprada das mãos Catarina de Mont’Serrat, naquela época o seu novo dono, o
também judeu Benjamin Benvensiste, tão logo adquiriu o imóvel, atentou à importância
da recomendação dada pela antiga proprietária. A senhora Mont’Serrat avisou
sobre as energias negativas existentes na sede do engenho, na fazen-da cuja
estrutura ela mesmo fundou:
“Então, é
preciso compreender que essa região é suscetível de maldição. Seria prudente
erigir uma igrejinha tão logo o senhor traga sua família para cá. Só não construí
alguma capela ou algo do tipo, porque nunca morei aqui. Deus me livre conviver
com o mau-agouro deste lugar!”
Benjamin Benvensiste, por questões de conveniência, abraçou
a fé cristã — pelo menos aparentemente. Astuto como bom negociante de
província, esse judeu tratou logo de agradar aos representantes da igreja
local. Assim, o mais recente empresário do ramo de agronegócios de São Gonçalo
deixou-se batizar, tornando-se o que costumavam chamar de “cristão novo” — e a
própria paróquia ganhou mais um aliado endinheirado. Recém convertido (falsamente
convertido, por assim dizer), o desenvolto empreendedor Benvensiste recebeu o
nome de Ramirez Duarte Leão. Cabendo, portanto, à igreja o papel de
fiscalizar-lhe os passos. Porque qualquer padre católico sabe quão afeitos são
esses homens e mulheres de Israel às práticas consideradas heréticas de
tradição milenar. Daí em diante, as terras outrora registradas como Engenho
de Mont’Serrat, mudaram para o registro de Fazenda dos Golán-Badê e,
posteriormente, devido à dificuldade dos gonçalenses em pronunciar seu nome, os
tabeliões regionais modificaram-na para Fazenda Colubandê. Ao ser questionado
sobre a mudança de nomenclatura da propriedade, Ramirez (ou Benjamin) que não
havia de fato abandonado a sua tradição semita, mentira descaradamente ao cônego
de origem holandesa, Reinald Gulzig, sobre a troca de registro do imóvel.
“Vossa
Reverendíssima me perdoe esse troca-troca de título, mas Colubandê vem bem a
calhar aos desígnios da Santa Sé. Pois é um registro bom esse, os poucos
caboclos que vivem aqui ao lado traduzem o nome como “casa de oração”. Essa é
minha homenagem aos Jesuítas, que aqui no passado tanto amor tiveram à
catequização dos índios dessa região.”
Enganado ou não, o clérigo Gulzig engoliu a história e a mentira
descarada de Ramirez Duarte Leão surtiu efeito. Após um logo almoço, que durou
duas horas de conversa e uma doação à igreja de setenta sacas de café cru e
milho moído, os dois homens se entenderam perfeitamente. Mas só os judeus
que compunham a minicolônia israelita organizada por Ramirez conheciam o nome
hebraico da Fazenda Colubandê (ou Golán-Badê), ou seja, “colinas de Gólan”,
região síria, de onde vieram os antepassados daqueles imigrantes judaicos
abrigados na propriedade agrária de São Gonçalo.
Ao tomar ciência dessas maquinações de nomes e coisas do
tempo em que o Ramirez presidia a pequena colônia dentro da Fazenda Colubandê,
o tenente de polícia Lúcius sentiu crescer, bem lá no íntimo, a semente de
pesquisador que não desenvolveu na época da faculdade. Agora, tudo estava à sua
disposição. Sua veia de historiador passou a provocava-lhe inquietações durante
os plantões noturnos na base da polícia localizada na sede da fazenda. E não
teve jeito, o tenente historiador deu larga vazão ao dom investigativo, meteu o
nariz nos registros da propriedade. Foi só uma questão de tempo para Lúcius
encontrar segredos no interior de uma das paredes, a princípio tão maciças,
achou-se um tesouro de papel de linho. Certo compartimento de mármore foi
descoberto pelo policial. Um tipo de arca embutida encontrava-se abastecido de documentos
e registros acerca das reuniões religiosas realizadas pelos Golán-Badês; como eram
chamados entre si os residentes brancos, conforme estavam inscritos ali os
judeus que praticavam o ritual em meados do século XVII.
O jovem oficial de polícia do batalhão florestal
descobriu não só dados de documentos, mas outro fato inacreditável, ele obteve
a experiência da descoberta ao vivo. Sim, uma experiência para investigador
nenhum botar defeito! Pois, foi durante uma ronda noturna no entorno da
igrejinha da fazenda, lá na parte esquerda e no alto da propriedade, quando
Lúcius viu aqueles dentre os quais pensava pertencerem ao grupo católico da
igreja carismática da cidade, reconheceu pessoas que revelaram ser verdadeiramente
um grupo diferente de pessoas — e o historiador tenente sentiu-se embasbacado.
Que absurdo! Ou melhor, que macabro! O grupo composto por integrantes das
reuniões mostrou-se outro, e nada de encontros carismáticos em honra aos céus.
Durante anos, pensou-se haver naqueles encontros católicos jornadas e vigílias
de oração. Eles tinham autorização da prefeitura para rezarem, expressarem suas
crenças na igreja da fazenda. Que enganação! Nenhuma missa ou rito bíblico
existia de fato, muito menos reunião beneficente ocorreu algum dia na antiga
propriedade do cristão novo Ramirez, falecido bons séculos atrás. Pois bem, mesmo
de longe, escondido entre as cortinas encarnadas que revestiam as paredes do
lugar, ao inteligente Lúcius foi possível entender — por causa da estátua de
leão colocada no centro da nave da capela. Estava claro, via-se a nata da
política gonçalense bem ali reunida. No meio do salão, sobre um pentagrama
pintado em cima assoalho de mogno, eles vestiam trajes esquisitos. Roupas em
cor marrom, tal qual uniforme típico dos santos capuchinhos, esquisitíssimo.
Amedrontador. Juntos, aqueles sujeitos com ares carrancudos constituíam a maior
parte dos vereadores, secretários, funcionários de cargos de confiança da
prefeitura — e tudo realizava-se ali, justo sobre o solo que deveria ser
sagrado, pois era uma igreja tombada pelo patrimônio. Que absurdo!
O elemento de conexão para o entendimento do jovem tenente
foi o leão inscrito nos documentos judaicos como Beemote ou Bahamūt. Sim, no
papel velho encontrado via-se um leão destacando-se nas gravuras quase
apagadas. As pinturas descascadas narravam fábulas (ou não), e a história
descrita acerca do animal, quando conjugada à prática obscura, mostrava
tratar-se de uma seita tudo aquilo a li à sua frente. Certamente, para Lúcius,
a presença do felino gigante com ares demoníacos em meio ao ritual serviu-lhe
de chave do mistério; conforme havia lido nos documentos sagrados dos Golán-Badê,
aqueles os quais foram escamoteados na parede, desde o século XVII. A
imagem leonina esculpida em pedra representava o demônio judaico Beemote: um
ser devorador de gente que deveria ter sua essência alimentada no primeiro
sábado de cada trimestre do ano cristão. Necessário aos portadores da tradição
dos Golán sacrificar um recém-nascido nestas malditas datas, caso contrário, o
monstro surgiria das profundezas das trevas e traria consigo todos os males da
humanidade. Consistia, obviamente, uma crença esdrúxula afigurando maldade, na opinião
do oficial da guarda florestal. Mas a seita de homens poderosos da cidade de São
Gonçalo funcionava como forma de manterem unidos os descendentes israelenses
que habitaram a fazenda. Meus Deus, que monstruosidade! Só por causa de uma
desgraçada tradição milenar retorcida, eles sacrificariam pessoas! Crianças
recém-nascidas seriam, em pleno século XXI, mortas agora? Que absurdo! Mesmo
Lúcius, que era de família judaica, não iria aceitar tamanha barbaridade aca-so
houvesse, nem aquele ritual configurava uma prática realmente com origem nos
seus antepassados. O oficial de polícia cresceu de acordo com os preceitos da
tradição milenar semita, e embora não fosse um assíduo da Torá, Lúcius tinha certeza
que tal prática diabólica com a qual defrontava-se em nada condizia com o
judaísmo. Seria urgente, portanto, denunciar tal acontecimento sinistro. Mas,
sem antes descobrir tudo. Se matassem alguma criança para saciar o tal Beemote
(o leão-demônio), o tenente iria usar sem hesitar da pistola de trabalho, só
para proteger a vida humana — e não foi para isso que ele se tonou polícia? O
jovem oficial não fez um juramento de farda? Dali para frente, enquanto
representante da ordem, prometeu a si mesmo acabar com toda palhaçada
envolvendo sacrifício de criancinhas — pelo menos indicavam os papéis de Golán
atividade com mortes de prematuros. Sim, lia-se bem naqueles documentos
encontrados dentro da parede, na sede da Fazenda Colubandê. O policial de bom
coração permaneceu ali no fundo do salão, escondido entre os panos vermelhos que
revestiam o reboco rústico do fim da igreja. E esse foi o e-mail que Lúcius me deixou antes de parecer enlouquecido, uma
semana depois do ocorrido que tanto o atormentou, no mesmo dia em que sumiu do
mapa:
Caro
ex-professor e amigo Armando,
O que vou
te contar não me deixa mais dormir. Como acredito que você é um dos que melhor
contribuíram à minha formação acadêmica, acredito que é a pessoa mais
competente para não deixar essa história macabra morrer. E se tiver como
denunciar essa crueldade e destruição da linda tradição judaica (lembra que sou
judeu, né?), por favor, denuncie. Porque não posso viver com o que presenciei.
O caso é
o seguinte: estava escuro. Muitas pessoas reunidas, como se fosse (e era) um
ritual. E uma mulher estranha, com capuz e sobrecasaca descobriu minha presença
junto aos panos avermelhados. Ela me encontrou escondido entre as cortinas e não
falou nada. Apenas me encarou enquanto me entregava um feto. Sim professor Armando,
um feto de uma criança. Aquele serzinho (que Deus o tenha!), nem nasceu para se
dizer que estava morto. Em seguida, a mulher decidiu falar, e ordenou a mim que
segurasse o pequeno cadáver envolto em manta negra. Tristeza, professor, eu
nunca tinha visto uma toalhinha de cor preta na vida. Enquanto o pequeno cadáver
escorregava das minhas mãos, ele emitiu um som. Terrificante! Um som dos piores
do mundo na minha opinião. Um barulho de fera ferida. E o feto ressuscitado caiu
no chão, mas caiu em pé. Verdade professor, caiu como felino que era. Eu vi e
apavorei. O bebê humano e morto transformou-se em segundos num leãozinho maldito.
Mulheres choravam muito, e rezavam alto, e começava uma discussão entre elas.
Era um cenário sombrio e sujo, meio escuro, dava medo. Aquela que parecia ser a
mais velha das mulheres, uma anciã de cara enrugada e sem dentes, olhava
furiosa para mim. Tremi e quase me mijei. A velha dirigia-se ao centro,
exatamente onde havia um pentagrama. O filhote de felino encontrava-se de pé no
meio do desenho de cinco pontas; e a anciã começou a falar coisas confusas.
Rezas estranhas de bruxa saíram da boca murcha, feitiços em outra língua, que
não era de jeito algum no idioma hebraico, mas ecoaram e espalharam pavor sobre
mim. E todos ao redor começaram a cair, a contorcerem seus corpos com serpentes,
e o leão a crescer em tamanho, rapidamente. Ele tinha uma cara leonina di-ferente,
percebi um chifre dourado no centro da testa. O felino me notou e rugiu, demoradamente, como se
conclamasse as forças ocultas. Daí então, corri. Eu corria muito, professor
Armando! O senhor nem imagina o quanto corri! Nesse momento da confusão, enxerguei
o prefeito da cidade caído no chão da igreja. Chamei por ele, implorei que se
levantasse e saísse daquele lugar – e não respondeu. Ao contrário, o prefeito
virou-se de barriga para cima e sorriu sinistramente para mim. Havia maldade em
seu olhar. Entrei em desespero. Daí por diante não lembro de nada.
Depois de ter me enviado o e-mail, Lúcius viajou para Israel,
pretendendo ficar com os avós. Sua irmã contou-me que os médicos atribuem ao
surto um quadro de neurose ou estafa mental, distúrbio muito comum em policiais
militares no exercício de função. Referiu-se ao momento que ela mesma, a irmã,
recebeu um telefonema de alguém (talvez algum amigo) contando terem encontrado
o tenente caído no matagal próximo à Fazenda Colubandê, de onde o levaram
direto ao hospital da polícia. Lúcius parecia alienado, delirava quando já o
tinham acordado, até que o sedaram e o internaram numa clínica especializada.
Os médicos deram licença ao jovem oficial e sugeriram a ele mudança de ares.
Foi o próprio Lúcius quem escolheu visitar a cidade de Israel. Eu, como conheço
a veia investigativa do rapaz que foi meu aluno de História, já compreendi suas
intenções. Bem, sobre as reuniões satânicas dos Golán-Badê, ninguém sabe de
nada. O prefeito riu na minha cara, quando o questionei numa entrevista que me
concedeu. Ele disse: “Colubandê, até onde
sei é uma fazenda cujo nome é homenagem aos Jesuítas. A propriedade era um
engenho, pertenceu a uma senhora católica, muito católica, uma tal de Catarina Mont’Serrat.
O povo de São Gonçalo adora contar histórias, professor Armando. Aliás, o senhor
é professor de quê mesmo? Ah! Professor de História, não é verdade?” E,
assim, termina esse relato com jeito de lenda. Se tive notícia do Lúcius? Tive
sim. Um dos seus primos estrangeiros, o Rabino Kadurat, segredou-me que o jovem
tenente foi preso explodindo uma pedra sagrada na colina de Golan, no
território sírio. Lúcius apareceu na internet sendo detido na Síria, sim, foi preso
o coitado. Ele deu entrevista a uma rede de televisão internacional algemado e
recitando fragmento do livro de Jó: “Contemplas agora o beemote, que eu fiz contigo. Deita-se
debaixo das árvores sombrias, no esconderijo das canas e da lama. As árvores sombrias
o cobrem, com sua sombra; os salgueiros do ribeiro o cercam”.
É isso. Por aí já temos uma ideia da encrenca em que o Lúcius
se meteu. Judeu estourando dinamite em território sírio é algo mais que
problemático. Talvez o amigo oficial tenha sur-tado de fato. Melhor então é
desacreditar.
*O texto "Beemote" foi cedido pelo autor e consta do livro Panapaná: Contos sombrios (Ed. Autografia, 2018, p. 61-70)
Sobre outro conto e a biografia do autor, veja aqui.