Três Sonhos em Uma Noite

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Assim que minha costela resvalou para a minha metade da cama, pedindo o meu calor, anunciei-me com a voz emprestada no sono “sonhei com a cidade sangrenta”. Havia sido o chiar da madeira da cama que a despertou quando me levantei para escutar a alma. Evito acordá-la para não a tesourar os sonhos, pois suponho que também esteja sonhando coisa que me interessa quando me for contar.
São três sonhos tão enigmáticos que decidi, não ler as quantas páginas que tinha para ler nessa madrugada, e escrever o seu sabor.

Tive o sonho com dois escritores, num penhasco em Cabo Delgado, sentados na sombra do coqueiral, uma delgada brisa do Índico serrava-nos a pele. Estranho não! Mas o sonho estava assim, o penhasco coberto de coqueiral no pico. Não sei muito bem como teríamos ido até àquele penhasco – podia ter sido de helicóptero, suponho! Mas não me vem à memória de ter visto um helicóptero cortando os ares senão nas visitas presidenciais ou diante de uma calamidade funesta.   
Era um dia calorento; as lezírias dos rochedos iluminados por um sol pálido. No tanto longe, podia-se entrever o Rovuma, águas escuras; não fosse do véu do horizonte, obviamente, podia-se também entrever o céu de Tanzânia.

Tivemos uma longa conversa corriqueira sobre a escrita. Eu tinha em mão “As Visitas de Dr Valdez” uma obra clássica; “não sei porque não se estuda literatura moçambicana aqui no país” – disse o escritor, polémico e quase ninguém mais lhe dá ouvido.
De súbito, pulei do sonho. Lembro-me de ele ter dito que era estudado nas faculdades brasileiras. Achei-me numa escuridão, num arranha-céu do qual não me lembro como teria subido; se foi pelo lance das escadas ou pelo elevador. Espiei a janela suada de orvalho, uma pilha de livros, boa literatura clássica arrumada na estante. Charles Dickens estava lá. Alias, logo no saguão, no soalho enxadrezado “O Pequeno Príncipe”; detive-me por instantes na dúvida, se o levava comigo ou o deixava, e ir-me embora; de facto, mandei-me embora.

Consciente de que os sonhos são fugazes, afastei as persianas para levar alguns títulos e lê-los enquanto durar o sonho; puxei até mim “A Culpa é das Estrelas”, e nesse súbito, tornei a pular pra outro sonho, não intencionalmente, sem contudo ler, este último muito horroroso como poderá conferir no fim.
Vagueava pela avenida Filipe Samuel Magaia – as ruas já começaram a ter nomes nesta urbe poeirenta, as ruas com asfalto nos buracos – não me lembro basicamente de como me havia trajado, assim que decidi, subitamente, andar de andrajos tal qual a um mendigo – acho fácil viver assim – contornei a pequena rotunda que parece roda de um tractor – diz-se que há muito tempo, por aqui crescera uma acácia plantada pelo governador colonial – desaguei na avenida Julius Nyerere, a pouco menos de trinta metros, havia um bando de gente aglomerada, espantosa, na margem esquerda da estrada.

Havia corpo de um jovem trucidado por um camião de carga; dividido em partes, da cintura aos pés, a metade esperneava enlouquecida de dor, da ausência do comando do sistema nervoso, penso; o resto do corpo estava imóvel, não respondia, mais imóvel que uma pedra.
Como de sempre, apesar de ser no coração da cidade, o prevaricador executou sua manobra de fuga e desapareceu abandonando o camião obstruindo a circulação dos poucos carros que existem na urbe; todavia, os táxi-motos que por ali passavam, afrouxavam e fintavam a nódoa de sangue viscosa, espessa no alcatrão. Parei para comtemplar, contudo, muito horrorizado, o rubor de fogo a subir-me o corpo,  caí em náuseas.

De repente, o alarme, debaixo do travesseiro, abriu-me a janela da realidade; acordei numa eminente vertigem, muito arrepiado, até a própria alma sobressaltada – que sequência de sonhos estranhos! – a bem da verdade, não sei por que a morte tem este lado asqueroso!

É tão incrível que eu não me tenha habituado a despertar por mim mesmo às três da manhã para o meu ritual de leituras – adoptei o hábito de ler cem páginas por dia ou mais, dependendo da dopagem.
Levantei-me para urinar no pinico – não sei donde concebemos a ideia de existir monstros sugando sangue nas trevas – pois evito sair fora de noite. No exterior da casa, a guizalhada do grilo solteiro cortava a madrugada; sentado no canto sombrio da casa, a luz do candeeiro à altura dos olhos, as palavras acendiam no papiro enquanto escrevia estes sonhos.

Por Alerto Bia

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