Ninguém quer ser Ntomassi: Makholwa hi kusvivona

Ninguém quer ser Ntomassi: Makholwa hi kusvivona
Mulandi Mazoio

Amanheceu cedo naquele dia, pelo menos para mim e para minha irmã, que não estamos habituados a madrugar. Para meus pais estava tudo normal, a mamã até arrancou-me os cobertores de forma cruel, expondo-me aos poucos graus centígrados das manhãs de inverno, para acordar-me. Até os galos dormiam àquela hora, não sei quem foi que instituiu essa regra, que problemas tinha essa pessoa com o sono alheio? Acordar cedo o escambau! E ainda me chamam de preguiçoso! Preguiçoso uma ova! Eu só estou a atrasar a minha morte. Nós temos missões aqui, todos! Aqueles que são práticos demais e cumprem suas missões muito rapidamente morrem cedo também, é assim que funciona. Por isso nós, os ociosos, vivemos mais. Deus gosta dos activos, revolucionários, justiceiros, por isso os leva ainda jovens, vigorosos.
Como se não bastasse a hora, o frio e o barulho da mamã, meu pai repetia, inúmeras vezes, que devia prender os cães antes do banho. Ele não queria correr o risco de indemnizar outra senhora diabética que, coitada, passaria pela nossa rua à caminho da igreja e se veria  mordida por uma das duas fêmeas que aproveitariam qualquer distracção para atravessarem o portão. Que manhã dos infernos!!
A estrada fez questão de ressaltar que mal tinha amanhecido. Não havia muitos veículos além dos camiões de carga, mais ainda dos de pães, que faziam a distribuição para que não faltasse matabicho às famílias. Bom para mim, que conduzia, menos encandeamento. Nosso destino era a machamba da minha mãe, arredores do Município de Boane. Deveríamos ver se já dava para colher o amendoim e a mandioca. O milho, que é um pouco mais exigente, não resistiu ao sol intenso de sucessivos dias, sucumbiu.
A paisagem verdejante, sucedida pelo areal e pequenas pedras,  anunciou-nos a chegada. As folhas das árvores e o capim estavam ainda húmidos, como costuma ocorrer em manhãs de cacimba. Espalhamo-nos pela machamba, descalcei as sandálias e passeei meus pés pela areia mole, formando pequenos buracos onde pisava, que prazer! Até esqueci-me da frustração de hora atrás, o dia começou a ficar bonito, na verdade o dia estava a começar, para mim, naquele momento. Observei tudo à volta, muitas árvores, muito verde, muita paz. A mamã, interrompendo-me o momento de satisfação, chamou-nos logo que viu o que se passava debaixo do seu cajueiro. Arrastei-me ao encontro dela.
- Alegria de pobre dura pouco!! – murmurei, indignado, enquanto aproximava-me.  
- Aqui em Maputo as pessoas têm abuso. Tiram a castanha e deixam o caju! Levaram a minha castanha! – asseriu ela, irritada, como sempre.
Eu e a minha irmã não entendíamos, contudo, lobrigando o chão víamos cajus podres, desprovidos de suas cabeças, aliás, castanhas.  Afinal era justa a insatisfação dos meus pais, cresceram em um contexto diferente, ela é de Inhambane, Mabote, e ele de Gaza, Manjacaze. Até hoje nessas províncias do Sul do país o costume prevalece, a regra é simples, quem tiver fome pode comer o caju de qualquer cajueiro, mas deixe sempre a castanha à sombra da árvore. Isso é totalmente respeitado lá, ninguém rouba a castanha do outro. Isso não acontece só por educação, há muito medo em volta.
Lembro que já tinha ouvido coisas parecidas no tempo da secundária: a escola estava perto de cursos de água, então, logicamente, próxima de algumas machambas. Para afastar ladrões e alunos das produções havia muitas estórias espalhadas, uma das que mais me assustaram foi a de um jovem que fora roubar alface na machamba de uma velha durante a noite, o que sucedeu é que depois de colher e amarrar tudo num saco de sisal, o ladrão não conseguiu sair da machamba, caminhou entre os canteiros tentando buscar a saída daquele labirinto até a manhã seguinte, tendo sido encontrado pela dona e seus colegas, e consequentemente espancado para nunca mais regressar. Acreditem, essa estória logrou seus intentos.
Ahhh!! Agora lembrei-me de outra. Quando criança, durante as férias em casa do primo Walter, lá longe, em Nkobe, havia uma mangueira com frutas tão lindas e apetitosas que praticamente gritavam nossos nomes para que as arrancássemos e as mordêssemos com todas as forças dos nossos dentes. Mas, adivinhem, nenhuma criança chegava perto. O dono da árvore era um velho solitário, que além da casa grande, tinha uma palhota no interior do quintal, então dizia-se que era curandeiro ou feiticeiro. O primo Walter contou-me que certa vez uma criança ignorou todas advertências, desafiou o velho, arrancou uma daquelas mangas e comeu, no dia seguinte sua barriga inchou tanto que parecia esperar há quase nove meses, trigémeos. Descobriu-se, no hospital, que era água o conteúdo. Os médicos retiravam-na e ela voltava, como se houvesse uma torneira no interior, pronta para encher a barriga assim que se tirasse a água existente. Os médicos trocaram duas vezes de turno e a água não cessava, até que o miúdo morreu. Acreditem, essa estória serviu para manter-me longe daquelas mangas, o que mais doía é que nem o velho comia, caiam, de podridão, naquele enorme quintal. Na verdade eu não acreditava que comer uma, só uma daquelas mangas poderia causar tal infortúnio, mas não seria eu o herói que provaria que estavam todos errados.
De volta ao assunto da castanha, meu pai falou daquela que é vendida ao longo da Estrada Nacional número um, que fica pendurada em troncos.
- Você já viu alguém a vender aquela castanha? Algumas vezes paramos para comprar mas os vendedores não estavam. Ainda assim ninguém se ousou a levá-la.
Havia muito sentido no que dizia, reparei. A superstição abunda nas cabeças das pessoas, de todas. Há dois grupos que conheço: dos temerosos, que acreditam fielmente; e dos incrédulos, que não acreditam. A única coisa em comum nesses grupos é que nenhum deles age em desafio às regras supersticiosas que lhes são impostas. No final todos as respeitam, quando se diz que a castanha tem que ficar na sombra da árvore para o dono ela fica, afinal de contas, como diz meu pai, ninguém quer ser Ntomassi: Makholwa hi kusvivona.

1 Referência bíblica ao Tomás, discípulo de Jesus que não esteve na sua aparição
depois da crucificação e não acreditou quando os outros apóstolos lhe contaram.
Traduzindo: Ninguém quer ser Tomás, o que acredita vendo.

Por Mulandi Semende Mazoio

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