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"O amor equipara-se ao lume, arde mediante os sentimentos que lhe são depositados; mas também equipara-se a um vidro, quando espatifa-se não volta ao seu estágio inicial."
Olhou para o céu do compartimento, e notou que a estrela artificial estava apagada, o que lhe sugeriu aumentar o tamanho do agregado familiar. "O escuro traz vida, e a luz revela o amor encontrado nos lençóis profanos". Em meio àquelas trevas, o sorriso ganhou vida, embora sem testemunha para dar sentido ao desabrochar do girassol. Se espreguiçou esticando a mão direita buscando compartilhar o seu desejo com a vizinha da cama. Apalpou-a de todas técnicas que um homem aplica para amolecer o corpo feminino a ceder o que agrada a carne e ilude a alma. Sua mão revelou-se fria, denuciando a ausência da sua costela evânica. Tranquilizou o coração com pensamentos coloridos. Pensou que Marcelina fora esquentar o seu apetite carnal no quarto de banho.
O relógio engoliu vinte minutos a passos de uma mágica incompreensível; a surpresa começou a evaporar na mente de Manuelito tal e qual o nevoeiro que perde o protagonismo no duelo entre o sol e o tempo. Decidiu desprender-se da nuvem artificial e fria, que começava a gelar sua paciência. Como se procurasse "desincomado" do soalho, que repousava os flagelos das pisaduras, activou o modo felino andando na ponta dos dedos.
- Meu marido está em casa...
As palavras arrombaram-lhe os ouvidos como o vento que abana a virgindade das árvores miúdas. Perdeu o apetite de mergulhar naquele corpo no qual tanto depositara braços e fragmentos do seu coração. "Mente do homem é uma terra fértil para imaginação", não demorou a costurar demónios que lhe tiraram o sossego. Continuou procurando demónios por trás da porta, ouvindo as palavras que lhe pertenciam sendo depositadas ao ouvido de um outro:
- Tambem ti amo... Sensualizou a voz. - Desliga você... desliga...
Creditou vários beijos no coração do beltrano, debitando o sentimento do Manuelito que lhe definhava os pensamentos.
O homem sentiu-se impotente, a sua macheza foi colocada em causa. Voltou ao pólo norte da sua companheira do repouso. Marcelina adentrou no local que deixara o homem desolado.
- É isso que fazes quando não estou? - A pergunta recepcionou-lhe.
- O quê?
A indagação demorara alguns fragmentos temporais para desanuviar a consciência da Judas feminina, que encontrava-se a divagar nas fantasias da adolescência tardia. Como se fosse Deus na criação do universo, ordenou a presença da luz naquelas trevas que ocultavam a decepção do chefe de familia. As costas do Manuelito expuseram-se nas retinas da sua Dalila.
- O que tens?
O galo sentiu que já não dominava naquela capoeira, e muito menos na galinha que se aninhara nas asas de um jovial galo. A deixou no desalento mental, no processo meditativo de desfiar o nó que se fizera na sua garganta de mudjoni-djoni. Fazia uma semana e alguns picos que Manuelito regressara da África do Sul, e o comportamento da Marcelina começava ser-lhe estranho como se tivesse vestido corpo de uma prostituta. A quarentena em contrapartida, começava a revelar o que seus olhos não conseguiam enxergar à distância.
- Não sou homem para dividir mulher! Virou para encará-la. - Prefiro comer peixe seco sozinho do que uma melancia em grupo.
Os pensamentos alinharam-se a passos de luz na consciência da Judas, borrando a maquiagem encantada que lhe vestira o rosto. Procurou mil incógnitas para acertar sua equação biquadrática, mas nenhuma lhe dava uma solução plausível para justificar o seu erro dos sinais.
- "O amor é uma planta que precisa ser regada de forma presente, senão morre aos bocadinhos!"
A frase se ajustou perfeitamente na sua voz sensual, porém não conseguiu amainar o misto de sentires que se tinha instalado no coração cardo-vascular do Manuelito. O silêncio corroeu-lhe a alma; preferiu sucumbir no som inexistente do que julgar aquela que um dia jurou-lhe amor eterno. O homem deu-se aos braços do além carregando incertezas no coração, e fardos na consciência. O homem preferiu deixar su'alma voar do que aprisioná-la numa relação profana. Assim, Marcelina livrou-se do julgamento do seu cônjuge mas não da condenação dos juízes sociais. Aumentou mais um assunto nos debates que avivam as bocas ferventes da vizinhança. Manuelito espatifou-se, não ia suportar a quarentena vivendo com o vírus da desilusão no seu coração; não ia suportar o distanciamento social carregando no peito o pecado mortal da sua amada; preferiu quarentenar-se na inexistência.
Por Arnaldo Tembe